Ásia

Índia

Terminando a viagem na incomparável Índia

Poucos países da viagem podem, separadamente, ser comparados em interesse à Índia. Sabíamos disso, por isso chegamos eufóricos. 

Nosso avião pousou no início da noite na capital, Nova Déli. Perdemos algum tempo entre pegar as bagagens e fazer a imigração. O táxi que embarcamos já deu o tom do que teríamos pela frente: o carro era poeirento, muito velho e seu condutor não falava quase nenhuma palavra em inglês. Para nós, isso era sinônimo de aventura. 

Depois de rodarmos em uma noite aparentemente tranqüila, pois já eram quase onze da noite, chegamos à rua do nosso hotel – estávamos próximos da conhecida Main Bazaar. Na chegada, a pouca luz da rua, quase que somente o letreiro do nosso hotel, não nos deixou ver bem como eram os arredores. A surpresa iria ficar para a manhã seguinte. Entramos na recepção e não nos assustamos. Era tudo razoavelmente limpo e bem mantido. O hotel não seria o problema. Já o café-da-manhã... 

Saímos para a rua animados. O calor no meio da manhã deixava claro qual seria o clima nessa nossa visita. A nossa rua, e a própria Main Bazaar, era tudo o que queríamos ver. Agito, trânsito desordenado, poeira, animais, carros velhos, tuc-tucs... Mais interessante, impossível. Saímos caminhando em busca do que eles chamam de Turist Bureau – uma espécie de pequena central de atendimento ao turista. Caminhamos meio perdidos, até encontrar, por sorte, uma escocesa que morava havia algum tempo em Déli. Ela nos levou até a porta do nosso Bureau. Até que foi muito útil, apesar do clima de repartição pública e de algumas grosserias do cara que nos atendeu. 

Zarpamos de lá em direção às primeiras atrações da cidade: o Forte Vermelho e a Mesquita Jami Masjid. Pegamos o metrô e depois caminhamos em direção à mesquita. Entramos em uma pequena rua e ficamos boquiabertos. Era uma rua muito estreita, que parecia nos transportar para o século retrasado. Os emaranhados dos fios elétricos, as portas antigas e o comércio muito simples eram realmente um portal para o passado. 

Chegamos a uma das entradas da mesquita na hora do almoço. Realmente não é uma situação fácil você perceber que é o momento de almoçar e de tentar escolher um restaurante baseado somente na fachada. Nessa hora, nenhum semblante apetece. Simplesmente não dá coragem de entrar. Por sorte a Du tinha anotado umas dicas do livro guia. Santas dicas! Assim, acabamos em um restaurante muito simples, tipo os nossos “pé-sujos” brasileiros, e aproveitamos uma boa e barata comida. Como sempre ocorre nesses lugares, a comida era também muito farta. A Dani se incumbiu então de pedir a “quentinha” e levar para alguém na rua. Não precisou procurar muito para encontrar alguém que precisasse muito. 

Saímos satisfeitos direto para a mesquita. Entramos após alugar nossas roupas mais, digamos, comportadas e ficamos um bom tempo observando a arquitetura e as pessoas. Novamente foi uma farra de fotos, assim como no Oriente Médio. Só que dessa vez a pobreza mais aguda fez com que os apelos por dinheiro, inclusive por crianças, fossem mais freqüentes do que os pedidos por fotos. 

Montamos no nosso tuc-tuc, que por sinal nos esperara por mais de duas horas, e fomos em direção ao Forte Vermelho. O caminho foi divertidíssimo. Tanto entorno, como direção, não deixavam tempo para marasmo. Tivemos até um acidente registrado pelas filmadoras: nosso tuc-tuc se enroscou com um pequeno furgão! 

Todo mundo inteiro, risadas de sobra, fomos ao Forte Vermelho. Era realmente muito bonito e renderam boas fotos, mas a nossa felicidade e as histórias ao final do dia ficaram realmente centralizadas no primeiro contato com o povo indiano: estávamos nos sentindo vivos. Jantamos em um excelente restaurante, esse totalmente focado para os turistas, e fomos dormir no nosso movimentado hotel, que ficava na nossa movimentada rua, nessa movimentada capital. 

No dia seguinte saímos para conhecer o mausoléu de Humayun, considerado um dos prédios mais bonitos de Déli. O transporte seria, novamente, o metrô. Na estação central um pepino qualquer nos metrô nos fez experimentar o potencial caótico indiano. Sabíamos que era algum pepino porque um garoto falou ao telefone em inglês do nosso lado sobre o trem estar demorando mais do que o normal. A multidão iniciou uma aglomeração em frente aos locais marcados no chão onde as portas teoricamente parariam. Parecia haver até certa organização, pois eram formadas filas. Porém, depois de alguns vários minutos, finalmente o trem chegou. Pronto. Bandalha geral! Empurra-empurra para dentro e para fora do trem. Não tivemos dúvidas e fomos no embalo da multidão trem adentro. O mais interessante foi uma menina que tentava sair do vagão, mas a multidão empurrava ela para dentro. Deve ser horrível morar num país assim... 

Seguimos no lotado trem até nossa estação e descemos em direção ao mausoléu. O lugar era novamente muito bonito. Na entrada, o descritivo do projeto de reforma do prédio, incluindo um projeto de urbanização do entorno com benefícios para a população local, nos chamou a atenção, assim como os inúmeros esquilos no jardim. 

Voltamos para o metrô e para nossa área. Dani e Alexandre seguiram para mais algumas visitas. Eu e a Du voltamos para o hotel depois do almoço para fugir dos 40 graus de temperatura. À tarde, demos uma excelente volta pela Main Bazaar e conseguimos boas fotos, principalmente das mimosas que passeavam livremente entre os pedestres e carros. Em determinado momento um vaquinha meio magrela avançou pra cima das frutas de um comerciante. Parei para ver o desfecho. A mimosa tomou um tapa no cangote e um chega-pra-lá! Sagrada, sim, até certo ponto... Voltamos satisfeitos com o passeio, apesar dos insistentes pedidos de esmola. 

Era hora de seguir viagem. 

Saímos bem cedo em direção ao aeroporto para pegar o avião que nos levaria à histórica cidade de Varanasi. Nossa intenção era deixar Déli por uma semana e voltar, passando por quatro cidades no total. Assim, fizemos a acertada decisão de deixar a maior parte das bagagens no hotel e seguir mais leve. 

O voo foi tranquilo e rápido, assim chegamos a Varanasi logo após o almoço. Conseguimos um táxi tipo cinco estrelas, por conta do ar condicionado, e seguimos em direção ao rio Ganges, nosso local de interesse. 

O táxi seguia em um bom ritmo, até se aproximar da parte povoada da cidade. Desde esse momento, tudo se transformou. Foi como em um filme. Varanasi abusa do poder de te transportar no tempo. A visita foi de uma intensidade incrível. Nós passamos, ao todo, um dia e meio em Varanasi. Porém, essa estadia nos deu mais experiências em algumas horas do que outros lugares nos deram em semanas. Estávamos revivendo nossos dias no norte da África. 

Paramos o táxi e descemos a pé. As antigas ruelas ao redor do Ganges não permitem o tráfego de carros. Seguindo o nosso recém contratado guia, percorremos ruas lotadas, empoeiradas e quentes. Esse tumulto era exatamente o que imaginávamos da Índia. O caminho para o nosso hotel, estrategicamente localizado próximo a uma das escadarias do rio, foi, de longe, o lugar mais sujo que pisamos até hoje. 

Caminhávamos por uma rua que possuía a exata largura de um carro. Centenas de pessoas disputavam espaço em um vai-e-vem frenético e suado. Vez por outra uma moto velha pedia passagem com a estridente buzina. Fotografávamos e filmávamos tudo. Parecia que essa era uma ruela secundária. Estávamos errados. Logo nosso guia quebrou à direita e nos fez entrar em uma passagem somente para pedestres. Aí, sim, vimos um lugar sujo. Vacas e mendigos habitavam o lugar, e ambas as fezes transformavam o ar em quase irrespirável. É bem diferente respirar o cheiro de fezes humanas. Chegamos ao nosso hotel boquiabertos. Mas era exatamente para conhecer esse lado da Índia que estávamos lá. 

Combinamos com nosso guia em fazer um passeio de barco pelo Ganges no entardecer e observar locais de interesse. Saímos para procurar almoço, e acabamos em uma padaria que tinha uma comida razoável. O caminho para ir e voltar continuava tão interessante que era quase espantoso. Voltamos a tempo de ir às escadarias próximas ao nosso hotel e ver, finalmente, o Ganges. 

Não há como explicar muito claramente. Não há muitos lugares parecidos para fazer uma comparação. Varanasi é única. A quantidade de pessoas e embarcações que circulavam pelas escadarias era imensa e seus rituais chocantes (ficamos sabendo mais tarde que era um mês festivo – tínhamos dado essa sorte). Estávamos na cidade sagrada dos indianos! 

Varanasi, que tem mais de três mil anos de existência, é sagrada justamente por causa do rio Ganges. Na verdade, não somente por ele, pois por ali passam águas de outros dois rios, mas é principalmente por causa do Ganges. O Ganges é o trem expresso indiano para a paz eterna. Pelas crenças hindus, todo ser humano reencarna, de maneira a obter mais evolução na vida que começa para poder, enfim, quem sabe um dia, alcançar o céu. Porém, ao morrer à beira do Ganges e ser atirado em suas águas, a alma não mais precisaria reencarnar, restando somente aproveitar a paz celestial. Isso explica a quantidade de cremações que acontecem ali a cada hora, vinte e quatro horas por dia.  Além do momento da morte, ainda em vida o Ganges também fornece purificação da alma. Através de rituais de banhos ou mesmo de consumo da água do rio, o indiano espera obter uma benção. Daí vem a quantidade de pessoas em suas escadarias, chamadas localmente de “ghats”. 

Saímos de barco a remo ao final da tarde. O sol estava se pondo e a temperatura era mais suportável. De imediato seguimos em direção ao principal crematório. Chegando perto, fomos alertados de que o pessoal não gostava que se tirassem fotos. Na verdade, eles cobravam por isso. Ainda bem longe, a Du conseguiu algumas imagens com a lente zoom. Depois paramos com as fotos e passamos somente a observar. Foi impressionante. A primeira coisa que você consegue identificar é a imensa pilha de madeira. Quando nos aproximamos, conseguimos ver as primeiras fogueiras. Algumas acesas, algumas sendo montadas. Mais perto, conseguimos identificar os corpos sendo queimados. Ficamos, novamente, boquiabertos. Particularmente, não me chocou muito o fato de um corpo estar sendo cremado. É um procedimento funerário comum. Porém, a forma como estava sendo feito era impressionante. Ao ar livre, em um barranco composto de terra e restos de madeira. À beira do rio corpos sendo manuseados, aos olhos de um estrangeiro, de uma maneira puramente informal. Novamente, a Índia nos colocava em uma espécie de filme. Passamos ainda por outro crematório, esse mais simples. Porém, com as mesmas cenas chocantes. Chamou-nos também a atenção um homem que meditava em meio ao calor das cinzas. Haja concentração. 

Paramos com a pequena embarcação bem próxima a uma parte das escadarias que funcionava como uma espécie de altar. Era nossa última atração, uma cerimônia religiosa. Foi bem interessante, mas nada que se compare aos crematórios. 

No dia seguinte acordamos cedo, bem cedo, tipo cinco da manhã, para sair novamente no pequeno barco e observar as cerimônias pela manhã. O sol estava incrivelmente alto, mesmo tão cedo, mas pelo menos não fazia tanto calor. Os crematórios continuavam lá, funcionando sem parar, mas as imagens do fogo no cair da noite anterior tinham deixado um impacto maior. O mais impressionante desse passeio matinal foi passar perto da outra margem, onde vimos muita sujeira. Analisando as fotos depois, constatamos que até corpos humanos dividiam a margem com o lixo. Logo depois, uma vaca morta deu um belo susto em outro barco de turistas, quando quase bateu no casco. Ao mesmo tempo em que presenciávamos esses aspectos mórbidos e sujos do Ganges, ficávamos estupefatos com a quantidade de pessoas, vivas!, “desfrutando” o rio! Crianças nadando e homens e mulheres rezando com metade do corpo mergulhado. Como é possível? Tanto as crianças nadando, como os adultos, no ritual, literalmente bebem da água. A impressão que tínhamos era que não devíamos nem colocar a mão nas águas. Como sobreviver a alguns goles?! 

Voltamos ao hotel para o café-da-manhã pouco antes das oito horas. O calor começou a dar as caras. Eu e a Du abortamos o outro passeio proposto pelo guia: ir de carro a alguns templos. Preferimos andar pelos arredores do hotel. Assim, Alex e Dani partiram sozinhos. 

Saímos para as escadarias após o café. A Du ficou quase meia hora tirando fotos de uma festiva família que estava se preparando para se benzer no rio. Depois caminhamos pelos degraus interessados em meio a uma multidão entretida por rodas de reza e outras cerimônias. Certa hora, um desses líderes espirituais chamou a gente. Eu desconversei e continuei caminhando. A Du rateou e, na sua inocência, começou a dar ouvidos. Não deu outra! Em pouco tempo ela estava na frente do figura, recebendo um carimbo de tinta na testa e repetindo várias palavras que não entendia. Tive que filmar! Estava muito engraçado. O cara visivelmente estava de olho na grana. Depois da “benção”, o figura me sacou um caderninho e pediu pra Du escrever os nomes dos familiares que seriam, em tese, protegidos em grupo. Estariam, assim, todos dentro do “pacote”. A Du escreveu o nome de todo mundo, tentando não esquecer ninguém. Depois... 

- Bom... Agora que você foi benzida, escreve aqui ao lado da lista da sua família o quanto você gostaria de doar... 

Nessa hora eu não agüentei o comecei a rir. Ao lado da lista das outras pessoas, apareciam valores entre vinte e trinta dólares. 

- Mas eu só tenho isso... - disse a Du, apresentando o equivalente a 50 centavos americanos! 

O cara se indignou! 

- Só isso?! Não pode! É muito pouco! 

- Mas eu só tenho isso... - choramingou a Du, doida pra ir embora. 

- Não pode! É muito pouco! Você tem dólares? Euro? Libras? Aceito qualquer moeda. 

- Não tenho nada. Só isso. [Já mais brava] 

O cara ainda insistia, mas viu que dali não sairia mais nada. Consideramos muita picaretagem esse esquema de dar uma benção, sem avisar sobre doação, e depois querer cobrar algo além do que a pessoa quer pagar. Saímos de lá com o cara meio injuriado. A Du meio assustada, e eu com um grande “eu te avisei!”. 

Continuamos caminhando pelas escadarias e conseguindo boas fotos. Porém, o sol transformou as escadas em sauna seca. O cimento fervia e a temperatura devia beirar os cinqüenta graus. Voltamos meio apressados para o hotel para tomar um banho frio e esfriar um pouco no sofrido ar condicionado do quarto. 

Depois de pararmos de bufar, fomos passear pelas ruelas da cidade com câmeras em punho. Novamente não havia espaço para marasmo. Cada passo, cada grupo, sempre algo de muito interessante. Até mesmo um figura carregando uma cobra viva. 

Achamos um lugar excelente para almoçar. Como sempre: comida boa, barata e bom atendimento. Era incrível, mas estávamos comendo melhor na Índia do que em muitos outros países. Saímos os quatro do hotel logo depois do almoço. Tínhamos que seguir para a estação de trem, de onde iríamos para nosso novo destino: Agra, a cidade do famoso Taj Mahal. Pegaríamos um trem noturno para cobrir os cerca de novecentos quilômetros de distância entre as cidades. 

O trajeto até a estação de trem foi uma aventura e tanto. O malandro do tuc-tuc não quis perder nenhum passageiro e colocou nós quatro no mesmo veículo. Isso além das bagagens! Fomos eu e Alex na frente com o piloto e Du e Dani atrás com as malas. Pitoresco demais! Além de tudo o cara tinha um adesivo da Ferrari no tuc-tuc! O cavalo rampante e as nossas câmeras filmando criaram uma fórmula que fez com que o figura resolvesse correr igual a um louco. Foi engraçado. Engraçado só porque chegamos todos bem. 

A estação de trem de Varanasi foi um capítulo à parte. Centenas de pessoas amontoadas e sentadas em um chão imundo. Lembrou-nos o ferry do Egito para o Sudão. Apesar de que a sujeira conseguia ser ainda maior. Caminhamos impressionados por entre as pessoas e os portões enferrujados. Achamos nossa plataforma e armamos acampamento, pois ainda faltavam duas horas para o trem sair. Nesse momento as coisas começaram a complicar para a Du. 

Ela começou a passar mal. Calor, fraqueza, enjôo. Consegui uma pedra de gelo, que ela usou para passar no corpo. Melhorou um pouco, porém fez mais efeito no entorno: o grupo de malandros em volta não tirava o olho da performance “erótica” da Du, no melhor estilo “Nove e meia semanas de amor. 

Entramos no nosso trem e negociamos com um casal coreano para que ficássemos os quatro juntos. O trem saiu ao cair da tarde, e aí o ar-condicionado começou a dar vazão. Ficamos papeando e observando pela janela, onde podíamos ver o quanto era precária a situação nos povoados mais afastados. Nessa hora a Du começou a ficar muito mal, fazendo visitas ao banheiro do trem de meia em meia hora. Vômitos e diarréia. Aperto, ou melhor, afrouxamento geral. 

Pequenas baratas nos visitavam com freqüência, a ponto de nem gerar muita polêmica nas caçadas. Mas não seria assim tão fácil. O coreano deu um grito e apontou para baixo da minha cama. “Barata?”, perguntei. “Não, maior!”, respondeu ele rindo, mas sem dizer o que era exatamente. Tirei as malas e comecei a procurar com uma lanterna... Nada. Desisti e coloquei tudo de volta. Poucos segundo depois, o pequeno saiu correndo! Um camundongo. Ele voou pra baixo da cama do lado e depois para a cama do coreano. Foi um agito só. A Du perguntou, meio lesada, o que era. Falei que era um camundongo, mas pra ela não se preocupar porque ele tinha uma cara até bem simpática. Mas morremos de rir mesmo quando Alexandre mandou: “Ah, essa Índia... Sempre nos surpreendendo. Até esquilos dentro do trem!”. 

Mais tranquilos, por se tratarem de esquilos e não ratos, dormimos. 

Acordamos já bem próximos a Agra. Saímos da estação, uma moleza se comparada à de Varanasi, no início da manhã e fomos para o hotel. A Du mal conseguia se segurar em pé. Sorte que nosso hotel era bem razoável, incluindo um banheiro limpo e um quase emocionante ar condicionado. Ainda eram dez horas da manhã quando a Du conseguiu, enfim, tomar um merecido banho e deitar na boa cama. Aproveitei para dar uma saída rápida e tentar achar alguma coisa pra hidratá-la. Pensar em um Gatorade era muita inocência. Mas a poeirenta farmácia me surpreendeu com pacotes de um preparado específico para re-hidratação. Perfeito! Levei pra Du e começamos a seguir a fórmula informada em bom inglês no rótulo. O sol das onze horas da manhã que eu peguei na volta da farmácia deixou claro que era impossível sair com a Du naquela hora. Estava fazendo, tranquilamente, perto dos 45 graus. Alex e Dani saíram para visitar um forte, então combinamos de nos encontrar para almoçar no próprio hotel e ir à tarde para o Taj Mahal. Não sabíamos se a Du conseguiria ir. Por sorte, e por soro, a Du melhorou no meio da tarde. Combinamos em esperar que o sol baixasse bem para então irmos todos visitar um dos prédios mais bonitos do mundo.  

Após passar por uma de suas entradas, tivemos a primeira visão do mais impressionante mausoléu do mundo. Inevitavelmente, cantávamos a música do nosso Jorge Benjor sem parar. O calor ainda era forte, mas um forte vento diminuía um pouco a sensação térmica. A construção é imponente ao longe, mas é de perto que ele realmente impressiona: nos detalhes. Cada pilastra, cada piso, cada quina, tudo visivelmente construído para atingir a perfeição. E também a eternidade. Tudo foi feito de maneira a criar algo indestrutível. Isso ficou claro por um detalhe, que particularmente me impressionou: as escritas negras ao redor dos portais de mármore não eram pintadas, e sim compostas de pequenas letras esculpidas em mármore negro e encravadas na pedra clara. Olhando esse detalhe bem próximo, e afastando-se para conseguir ver todo o emoldurado de letras em um pé direito de quase dez metros, não é possível segurar o próprio queixo. 

Saímos satisfeitos com a visita. Para mim, fiquei feliz principalmente pela Du ter conseguido ir também. A visita a um dos maiores símbolos de amor da humanidade não teria o menor sentido sem ela. 

Voltamos ao hotel e jantamos por lá mesmo. Estávamos meio estafados. 

Mas, no dia seguinte, seguimos firmes e fortes, dentro do possível!, para nossa próxima cidade: Pushkar, uma cidade também sagrada para os indianos. Só que dessa vez nossa vida seria mais mansa. Ainda estávamos meio ressabiados com o táxi que tínhamos contratado em Déli para essa viagem. Esperávamos sofrimento à frente. Isso porque seriam quase nove horas dentro de um carro e, obviamente, esperávamos um calhambeque. Felizmente estávamos enganados. 

Fomos agraciados com uma perua razoavelmente nova, com bancos individuais atrás, dessas que carregam até seis passageiros confortavelmente. E equipada com um fantástico ar-condicionado! A invenção do milênio! Fomos aos céus. Ao invés aguentar o sofrimento, usamos a viagem para recuperar as forças. E, como sempre, a viagem de carro foi ainda mais interessante, pois conseguimos ver de perto as cidades mais isoladas. 

Pushkar estava, pra variar, muito quente. Muito mesmo. Qualquer sombra, a quarenta graus, era geladeira pra gente. Andamos sempre com muita água e protegidos do sol. Demos um tempo no hotel, para esperar o sol baixar um pouco, e depois saímos para um primeiro passeio. A parte sagrada tinha relação, como usual, à água. Escadarias ao redor de uma pequena lagoa traziam piscinas para as cerimônias. Fomos obrigados a ficar descalços nas escadarias. Até aí, tudo bem. Mais ou menos. Seria mais tranquilo se essas escadarias não fossem bem imundas. As pequenas sagradas, as mimosas, passeavam livremente. O resto é fácil concluir. 

Tiramos algumas fotos e fomos a um dos restaurantes indicados pelo livro guia. 

No dia seguinte, fizemos a mesma rotina. Ficamos pelo hotel esperando a hora na qual a temperatura nos permitiria colocar a cara pra fora. Saímos por volta das três horas. Parecia que a câmera da Du ia derreter. 

Logo na entrada do centro da cidade, eu e a Du nos separamos do Alex e da Dani, que estavam entretidos com uns macacos. Ao invés de entrarmos direto para a lagoa, resolvemos seguir mais um pouco pelas ruas que a circundavam. Aí, veio a confusão. Um cara me parou tentando me dar uma flor para ser usada como oferenda. O cara insistiu, apesar de eu dizer que não faria oferenda nenhuma. Ele falou que não precisava pagar nada, que eu poderia seguir. Fui em frente a tempo de perceber que outro figura nos seguia. A gente andava, ele andava. A gente parava, ele também. Isso me irritou um pouco e me fez prever que teríamos problemas à frente. Logo depois, fomos abordados por um pessoal nos orientando a pegar uma das entradas para a lagoa, no estilo “é por esse caminho mesmo, seu trouxa!”. Falei que não iria entrar, que não queria nenhum evento religioso. Estava claro pra mim que seria mais um daqueles rituais somente para tirar dinheiro. Realmente, não nos interessava e eu não estava há mais de um ano viajando pra pagar o turista desavisado. Com a nossa relutância em entrar na deles, apareceu um figura fantasiado em uma lambreta. “Pronto, agora é que não nos deixam em paz”, falamos entre a gente. 

O cara se apresentou como padre e disse que a gente devia fazer o tal ritual. Falei que não acreditava em cerimônias que não fossem espontâneas e, por isso, não queria fazer nada. Começou o bate-boca: 

- Vocês só podem ir à lagoa se receberem a benção! 

 “E pagar um cascalho pros picaretas”, pensei. 

- Ok. Então não vamos à lagoa. Vamos somente andar pelas ruas da cidade. 

- Mas é só vocês receberem a benção, colocarem a tinta na testa, e seguir em frente pela cidade, sem ninguém perturbar vocês - falou ele, em tom meio ameaçador. 

- Ah, quer dizer que se não fizermos não poderemos passear pela cidade? Então tá! Então vamos embora. 

Ele mudou, tentando fazer uma cara mais malvada, tipo policial mexicano. Em tom mais ameaçador ainda, ele mandou: 

- De onde você é? 

- Brasil.

- Muito longe não?... 

Que cara abusado. Fiquei quieto. 

- Seguinte... Amanhã você vai ter que pagar. 

Lembrei que íamos embora no dia seguinte às oito da manhã e falei, observando os olhos do padre picareta mudarem de ameaçador para vitorioso: “Sim... Amanhã eu pago”. E fomos embora. Não pensei novamente naquela figura. 

Andamos um pouco e entramos na lagoa mais à frente. O calor era grande. Fiquei observando a Du fotografar e pensando: “Cadê Alex e Dani?”. Ficamos ali por quase meia hora e nada dos dois. Falei pra Du: “Do jeito que Alex é esquentado, deve ter saída na pancada com esses picaretas fantasiados de santos...”. Decidimos subir e tentar a sorte lá pela rua. Coincidentemente, e provando que não estávamos amaldiçoados, demos de cara com os dois na rua. Perguntamos como tinha sido a entrada. Não deu outra... A confusão tinha sido a mesma. Uma pena pra cidade eles tratarem visitantes assim. Era visivelmente uma forçada de barra para retirar dinheiro de quem está longe de casa. Nunca nos importamos em pagar um pouco mais do que locais para ter as mesmas coisas. Faz parte. Mas tem que ser só um pouco a mais, senão é roubalheira. E cobrar por serviços não pedidos ou não combinados é outra trapaça que fizemos de tudo para não colaborar. 

Relaxamos em relação à pressão “religiosa” e seguimos caminhando pela cidade. Alguns turistas invariavelmente carimbados na testa nos chamavam a atenção. Pouco depois, outro evento prendeu nossos olhares e lentes: estava rolando um casamento. O som dos tambores incrivelmente lembrava, e muito, o nosso samba. A romaria seguia pela rua, cantando e dançando. Em cima de um cavalo todo emperequetado, seguia o noivo não menos arrumado. No colo dele, um pajenzinho de uns dois anos. 

Pelo o que entendemos, o casamento começa com o noivo e a noiva saindo com sua romaria de pontos diferentes da cidade, para enfim se encontrarem no local da cerimônia. Passamos algum tempo seguindo o evento, aproveitando para tirar fotos. Em determinado momento, eles nos serviram uma espécie de iogurte aguado. Aceitamos cordialmente, apesar de não achar boa idéia tomar tudo. Na dúvida, não valeria à pena. Pensamos em abandonar os iogurtes, mas não queríamos ser flagrados na desfeita. Nessa hora, vi um pequeno muito pobre. Muito mesmo. Ele parecia pertencer à rua. Logo me veio a idéia de dar o iogurte para ele. Claro! Estendi a mão e dei para ele. Ele me olhou meio incrédulo, enquanto fitava freneticamente os lados. Vi que ele queria o iogurte, mas não se sentia seguro em bebê-lo. Ele sumiu, provavelmente para beber escondido. 

Logo depois fiquei observando a Dani e a Du em frente a uma mercearia. Ali estava meio confuso, mas não mais do que todo o resto do local. Vi quando a Dani entregou um saco grande de algum tipo de farinha para um garoto de seus oito a dez anos. Quando ela chegou perto de mim, vi que estava em prantos. Perguntei o que tinha havido e então ouvi a história: esse garoto, tão pobre quanto o do iogurte, estava ao redor do evento do casamento, mas aparentemente aproveitando para pedir esmolas. Nisso um homem, visivelmente integrante do casamento, saiu em direção ao garoto e o esbofeteou na cara. Com força, chegando a deixar um pequeno risco de sangue. A Dani e a Du ficaram apavoradas, e a forma que encontraram para protestar foi dar a farinha para o garoto. Depois, vimos que uma parte da cena ficou gravada em um dos nossos vídeos. O cara que bateu no garoto estava com o pequeno pajem nos braços! Como explicar esse comportamento? Simples... As tais castas. A antiga forma de opressão. Você nasce em uma casta inferior e, independentemente do que seja ou o que faça, será sempre inferior. Uma vergonha. Menos pontos para a religião indiana. Observando o pajenzinho testemunhar aquela cena, me veio o terrível pensamento do quanto aquele tipo de comportamento está perto de um fim. 

Seguimos bem cedo para a próxima e última cidade da nossa visita pela Índia, Jodhpur. A última cidade da expedição! Era o início do fim de uma fase muito especial de nossas vidas. 

Jodhpur é conhecida como a cidade azul, devido à pintura celeste presente em muitas casas de um bairro da cidade. Pegamos novamente um táxi para nos deslocarmos entre as cidades, esse infelizmente não tão confortável como o anterior, e fomos enfrentar o calor infernal. A viagem foi, como sempre, bem interessante. Paramos em uma cidade estilo terra arrasada e em outro casamento, que acontecia na beira da estrada. Saímos para fotografar e fomos exaltados pelo povo. Realmente turistas ali eram coisa rara. 

Chegamos ao nosso bem razoável hotel, que era excepcionalmente localizado. Logo depois do check-in, saímos para o primeiro contato com o povo na famosa praça da torre do relógio. Muito bom, muito interessante. Um mafuá de respeito. Tiramos algumas fotos e voltamos para o hotel para jantar. Aliás, um excelente jantar no terraço do hotel, tendo pano de fundo as iluminadíssimas muralhas do forte da cidade. 

Como já de costume, demos um tempo no hotel no dia seguinte para esperar o calor diminuir. A Du ainda não estava totalmente reabilitada, então não podíamos abusar. Lá pelas três da tarde, saímos para ir ao forte. É realmente uma construção incrível. Tanto o forte, altamente preservado, como as milenares muralhas. Deslumbrante. Agora, deslumbrante mesmo estava a Du, chamando a atenção de todo mundo. No hora da saída, ficamos meia hora até todo mundo tirar a foto que queria dela. A Du viveu seus dias de famosa. Todos foram embora cheio de fotos, e eu cheio de orgulho da minha musa. 

No volta do forte fomos ver de perto a parte azul da cidade e depois dar mais uma volta ao redor da torre do relógio do lado do nosso hotel. Indescritível! Passeamos no meio do povo e fotografamos o seu cotidiano simples e estagnado no tempo. A noite foi coroada com uma incrível omelete em um pequeno trailer pilotado por um garoto de seus vinte e poucos anos. Mais do que o omelete em si, foi a eloqüente conversa dele que nos divertiu. Ele apresentou, orgulhoso, seus catorze cadernos repletos de frases de apoio de turistas que provaram a sua omelete. 

O momento mais engraçado foi quando eu fui colocar um molho na omelete – na verdade um sanduíche de omelete. A bisnaga do molho, totalmente imunda, estava entupida. Quando forcei, ela meio que explodiu e fez uma cagada. Chamamos, entre risos, o figura pra ajudar. Aí veio a exemplificação crua da diferença cultural em relação à higiene. Primeiro, ele colocou o pão em cima do banco de plástico que servia de mesa, simplesmente imundo. Até aí, ferimento leve. Ele iria jogar o pão fora, óbvio. Depois de desentupir a bisnaga do molho, que por sinal era excelente, ele pegou o pão que estava no banco e limpou a lateral da imunda bisnaga. Novamente ok! O pão já era lixo mesmo. Só que aí, pra nossa surpresa, ele tacou o pão em cima da omelete e fechou o sandubão! Acreditam? Olhei para o pão e pensei: “Vou morrer, com certeza!”. Olhei depois pro Alex e perguntei, estendendo uma das metades: “A gente não tinha combinado de dividir?!”. 

Sobrevivemos!

Voltamos para Nova Déli de avião, em tom de despedida. Voamos tranquilos e chegamos igualmente serenos ao nosso já conhecido hotel. Rolou até um bate-boca sobre a reserva, mas nada demais. 

A visita à Índia foi especial. Foi nossa última grande aventura. Nossa última grande imersão em uma cultura radicalmente diferente da nossa. E valeu muito à pena. Jamais esqueceremos os dias que passamos nesse intrigante país. Começávamos agora o caminho de casa. Não seria rápido: uma passagem pela Europa e depois novamente a direção da Cidade do Cabo, onde nosso amigo de metal nos aguardava.