Ásia
Vietnã
Vietnã – boa comida entre histórias de guerra
Chegamos ao Vietnã através da sua capital, Hanói. De cara, já no aeroporto, a república socialista mostrou suas diferenças: fardas e rostos pouco sorridentes. Porém, nada de muito assustador e tampouco demorado.
Felizmente tínhamos feito a aplicação para o visto pela internet, então não havia muito o que discutir, e sim esperar. Saímos pouco depois das oito da noite para observar pelas janelas do táxi uma Hanói escura, silenciosa e intrigante.
A chuva era nossa companheira, assim como boa parte da visita a Bali. Porém, ao contrário da ilha da Indonésia, em Hanói fazia um frio de lascar. Chegamos ao nosso hotel, de certa forma bem impressionados pela fachada e recepção – era um luxo comparado com outros pelos quais havíamos passado. Paramos e fomos excepcionalmente recebidos pelo pessoal do hotel. Muitos sorrisos e um bom inglês nos fizeram ficar mais relaxados. Pelo cansaço, resolvemos pedir comida no hotel mesmo. Foi quando fomos apresentados à boa comida local e aos excelentes preços do país. Comíamos os quatro pelo custo de um.
Saímos na manhã seguinte para encarar a chuva e o inesperado frio. Fazia perto de dez graus! Colocamos todos os casacos que tínhamos, e que achávamos que iríamos aposentar depois da Nova Zelândia, e partimos para dentro do vento gelado. Mas qualquer esforço era recompensado simplesmente pela observação da rua. Mesmo com a chuva, inúmeras scooters faziam da rua um caos impressionante. Parecia ser possível parar em um dos cruzamentos e ficar entretido somente observando como as pequenas motos e os carros compartilhavam os poucos espaços disponíveis. Isso sem sinal ou buzina. E sem parar! Só vendo... Atravessar a rua era diversão garantida.
A política tributária sobre construções também gerou uma característica peculiar na arquitetura: o valor do imposto é calculado em função da largura da fachada. Ou seja, quase todos os prédios eram extremamente estreitos, apesar de alguns andares de altura, o que faz com que alguns trechos a cidade pareça ser de brinquedo. As gambiarras na rede elétrica também chamam a atenção.
Nos frustramos na tentativa de ir ao museu de guerra, pois estava fechado. Também não tivemos sorte na entrada do museu Ho Chi Minh. Resolvemos então pegar um táxi de volta a parte central da cidade. Foi um momento chato: o motorista meteu a mão e roubou na tarifa. E ainda tentou roubar no troco! Picareta...
Aproveitamos a molhada e gélida Hanói por alguns dias mais, valendo inclusive um divertido passeio tuc-tuc na base do pedal, uma visita ao Museu da Literatura e ao show de bonecos sobre a água. Em seguida embarcamos em uma viagem para o litoral. Nosso objetivo era conhecer Halong Bay, um dos lugares mais famosos do Vietnã. Atrasamos em um dia a saída depois de ver a previsão do tempo. Ainda assim tínhamos a impressão de que veríamos nada além de chuva.
Saímos cedo pela manhã em nosso pequeno ônibus e o tempo começou a dar sinais de melhora. Ao menos a chuva tinha parado. Durante o caminho foi possível ver um pouco da dura realidade vietnamita. Casas simples, prédios inacabados, comércio básico e bastante poeira nas ruas.
Seguimos pela tumultuada estrada, até chegarmos ao pequeno porto ao final da manhã. No porto, a quantidade de embarcações era impressionante. Uma digna ilustração de como o turismo está se desenvolvendo no país. Alheias à palavra “desenvolvimento”, as embarcações de madeira eram seguramente o charme local. Parecia que estávamos em um porto do século XIX. A neblina ainda tomava conta do cenário, porém o frio de Hanói havia ficado para trás.
Embarcamos, assumimos cada casal seus aposentos, e fomos direto ao salão principal para o almoço. A comida não era ruim, mas estava longe de ser a maior atração da viagem. Pouco mais de uma hora navegando, tudo se justificou: não havia uma única nuvem no céu! Algo totalmente incrível. Após três dias inteiros sob água nas ruas de Hanói, tínhamos, finalmente, um céu azul. E no melhor momento possível, sobre as águas e por entre as esculturas naturais de Halong Bay.
Com a ajuda do sol, pudemos apreciar e fotografar esse privilegiado local. Suas incontáveis e escarpadas ilhas formam um cenário e tanto. Segunda a lenda vietnamita, os dragões, sempre os dragões, vieram ajudar o povo local em uma batalha contra o império chinês. Após a guerra, os dragões teriam se solidificado e as montanhas seriam seus dorsos ondulados.
Assim que chegamos, fomos a uma caverna. Não entrei muito empolgado, pois não achava que cavernas poderiam nos dar imagens inéditas ou muito impressionantes. Estava enganado: a principal caverna local, conhecida como Sung Sot, era mais do que impressionante. Algumas galerias eram verdadeiros prédios subterrâneos, e a visita valeu muito à pena.
Seguimos de volta à nossa embarcação a tempo de aproveitar o fantástico pôr-do-sol para as fotos. A luz refletida nos outros barcos e nas montanhas garantiu a programação da tarde. Navegamos nos mares tranquilos enquanto o jantar era servido. Ao final, uma noite tranqüila e de temperatura amena. Fomos dormir ouvindo ainda ao fundo sons da paixão nacional: o karaokê. Poucos divertimentos mudam tanto de acordo com o teor etílico no sangue. O karaokê varia entre irritante sóbrio ao hilário manguaça em poucos copos. Como estávamos todos meio baqueados, sequelas do frio de Hanói, ficamos na primeira opção e fomos para o quarto.
Na manhã seguinte, desembarcamos, após o café-da-manhã, no Cat Ba National Park. Lá, tínhamos a opção de pegar umas bicicletas ou alugar scooters. Não pestanejamos: pegamos dois exemplares do popular transporte motorizado e fomos dando risadas pelo caminho. Fizemos vídeos engraçadíssimos. A melhor parte foi quando eu e a Du estávamos um pouco à frente, quando eu parei atravessado na rua para a Du filmar a vinda da scooter de Alex e Dani. A Dani estava na direção, vindo bem devagar. Porém, apesar de devagar, sua velocidade não reduziu quando chegaram perto. O olhar de desespero da Dani, tipo “onde fica o freio” deixou claro: vai bater! Não deu outra... Bum! Batemos. Nada de mais, bem devagar, mas muito engraçado.
Navegamos mais um pouco, e a parada da vez foi na praia dos macacos. Sempre os macacos! Fomos ao final da ilha e começamos a subir na pedra. Chegamos ao topo a tempo de ver que os macacos, na verdade, estavam lá embaixo, na própria praia. Eu a Du voltamos. Chegamos perto de um grupo de cerca de meia dúzia de indivíduos. Cheguei bem perto, quando um deles, o mais malandro, desceu e fingiu que ia me atacar. Ele dava um pulo pra frente e parava, deliberadamente fingindo um ataque e aguardando um recuo meu. Era a reação humana que ele estava acostumado. Como eu fiquei parado, apesar de receoso com a ação do malandro, ele ficou me olhando sem entender. Afastei-me e a Du continuou tirando as fotos. Foi aí que ela deu mole: para fotografar um, ela deu as costas para o malandrão. Inevitável: vi quando ele correu na direção dela e agarrou na sua calça. A Du, apavorada, começou a correr. Pra quê? Juntaram uns três atrás dela! Pena que eu não estava filmando! Foi hilário! Corri na direção dela e foi minha hora de dar um show de gritos pra afugentar a gangue. Tinha completa noção de que se a turma partisse pra dentro da gente novas vacinas de raiva seriam inevitáveis. Mas os trombadinhas afinaram e recolheram os dentes. Quando Alex e Dani chegaram, ficamos vários minutos rindo com os pequenos e tentando conseguir novas investidas deles para mais fotos e filmagens.
Era hora de desembarcamos na ilha de Cat Ba. Pequena e turística, a cidade não tinha grandes atrativos, então aproveitamos para dar uma descansada. Espirros e tosse eram partes integrantes das nossas conversas.
Voltamos à embarcação no dia seguinte e navegamos de volta ao porto. O dia completamente nebuloso e nublado reforçava a sorte que tínhamos dado no dia anterior. Durante o caminho, mais um almoço a bordo. Dessa vez seria um curso de culinária. O curso não tinha nada de mais, porém toda a graça ficou por conta de um italiano que estava por lá e que era uma peça rara. Nicola garantiu as risadas de todos e depois almoçamos em uma grande mesa para desespero da tripulação, que não queria mover as mesas de lugar.
Chegamos ao porto e depois a Hanói. Tínhamos algumas poucas horas até a partida do nosso trem noturno para a cidade de Da Nang e de lá para Hoi An, nosso próximo destino.
O trem foi bem divertido. Entre tossidas e espirros, fomos conversando e vendo o que podíamos pela janela do barulhento transporte sobre trilhos. Chegamos a Da Nang ao final da manhã e fomos de táxi direto para nosso hotel em Hoi An. O hotel era bem arrumado e o pessoal incrivelmente atencioso. Porém, toda a atração estava na cidade de Hoi An, famosa pela alfaiataria. Mercados, restaurantes, lojas – tudo muito bem cuidado.
Ficamos por três noites, aproveitando para comer muito bem (aliás, fizemos por lá algumas das melhores refeições de toda a viagem) e passear de scooter. A Du fez um filme fantástico com a lente “olho de peixe”. Vale conferir, porque mostra bem como é essa pequena e agradável cidade.
Certa hora, estacionei a scooter na rua próxima ao mercado, bem perto do meio fio, junto a outras duas mais. Depois de uma hora e pouco passeando por entre as barracas dos mais variados alimentos locais, começamos a voltar. Nessa hora... “Cadê a scooter?”. Haviam recolhido ela! Ficou claro que era proibido parar ali, apesar de haver outras no momento que parei e de não existir nenhuma sinalização. Lá fomos eu e Alex atrás da motoca.
Achamos a lambreta em um pequeno depósito. Sob a coerente alegação de que éramos de fora e de que não havia nada que nos avisasse da proibição, eles liberaram a moto. Isso mediante o pagamento do custo do reboque: incríveis um dólar e meio em moeda local.
Todos novamente motorizados, voltamos ao nosso hotel. À noite, mais boa comida. Saímos de Hoi An muito bem impressionados. A pequena cidade, assim como o que tínhamos visto até agora no Vietnã, era bem turística. Ou seja, não estávamos conseguindo grandes imersões no país, mas estávamos aproveitando bastante a simpatia do povo local.
Após um voo rápido chegamos, finalmente, à famosa Saigon. Ou melhor, Ho Chi Minh City – a antiga capital do Vietnã do Sul recebeu o nome do líder comunista após a desocupação americana e a unificação. Tínhamos achado Hanói meio caótica. Pois bem... Bem-vindos à Ho Chi Minh City! São sete milhões de habitantes, que pilotam nada mais nada menos do que quatro milhões de scooters! Como não havia chuva, elas simplesmente tomavam conta das ruas. O mais engraçado eram as aglomerações nos sinais. Parecia que em cada esquina havia uma maratona iniciando. Centenas de cabeças. A única diferença eram os diversos capacetes.
Nosso hotel, agendado pela internet, era uma porcaria. Mais do que somente faltar internet ou água quente, o que nos irritou foi a postura do pessoal da recepção, tipo: “É, tá quebrado”. “E quando volta?”. “Não sabemos. Quem sabe mais tarde?”. Pra quê? Picamos a mula de lá no dia seguinte. Aí a recepcionista ficou, finalmente!, preocupada. Mas aí era tarde. Saímos fora.
Chegamos ao nosso novo hotel, pagando obviamente um pouco mais caro, mas pelo menos as coisas funcionavam. Estávamos, finalmente, no nosso “Pedaço de Saigon”, então não parávamos de cantar junto com Emílio Santiago.
Na primeira oportunidade fomos ao museu de guerra. Tínhamos ficado chateados com a perda do museu em Hanói, então não queríamos arriscar. Para entender o Vietnã é preciso falar da guerra contra os Estados Unidos, algo muito recente e realmente muito impactante.
O museu não só não decepcionou como surpreendeu. Não há como visitá-lo sem se abalar. A maior parte do museu foca nos americanos e suas maldades. Há de se abstrair e compreender essa total parcialidade. Não é lá que você vai entender o contexto da guerra e chegar a um entendimento de como se desenrolaram os acontecimentos e se essa guerra poderia ter sido evitada. No museu você verá somente as ilustrações de como uma guerra pode ser cruel e lamentável, e como as marcas da violência ganham amplitude sob o olhar da população civil, vítimas alheias às decisões políticas.
Decididamente a parte mais impressionante é a galeria totalmente dedicada à arma química conhecida como Agente Laranja. Através da dispersão de dioxinas, o material mais tóxico do mundo, os americanos buscavam, dentre outros objetivos, matar a floresta nativa, óbvio esconderijo dos vietcongues. A grande maldade da história reside nos efeitos de longo prazo: a contaminação do solo e das águas pela persistente dioxina. Durante anos a população local sofreu com mutações genéticas decorrentes do contato dos pais com a dioxina. Inúmeros casos de chocantes mutações são apresentados no museu, para desespero de quem o visita.
No dia seguinte, nosso contato com a história da guerra ocorreu em outro cenário, quando fomos a um lugar onde estão preservados os túneis utilizados pelos guerreiros locais. Mais do que somente ver e andar pelos conhecidos Cu Chi Tunnels, essa espécie de museu ao ar livre também apresenta diversos outros aspectos dos anos em guerra: armadilhas, estruturas de sobrevivência subterrâneas, como quartos de dormir e cozinhas, além das histórias dos seus heróis. Diferente do museu em Ho Chi Minh, essa parte focava inteiramente na bravura e heroísmo dos guerreiros e guerreiras.
Algo surpreendente foi saber de onde os vietcongues retiravam o metal e a pólvora utilizados na construção artesanal das armadilhas e minas: das próprias bombas americanas que falharam e aterrissaram sem se detonarem. Passamos por uma réplica de uma humilde casa da época e pudemos ver como sua pequena porta era defendida por uma dessas armadilhas. Essa em especial era constituída de uma pesada madeira com vários pregos de um palmo de cumprimento. Ao abrir a porta, essa madeira pendularia em direção ao invasor. Não tem como não pensar na ironia do fato de essas armadilhas terem sido feitas do próprio material americano.
Essas e outras armas eram apresentadas com orgulho pelo guia. Não era possível deixar de pensar nos soldados americanos feridos pelas armadilhas. Muitos deles eram extremamente novos. Alguns eram contra a própria guerra. Mas certamente nenhum deles participou das decisões que os levaram ali. A guerra é, realmente, uma merda.
Ao final da pequena excursão você é convidado a ir a um estande de tiro. Eu e Alex aproveitamos para testar algumas armas. Para mim, foi uma total ambiguidade. De um lado, lembrei do meu pai e da sua relação totalmente pacífica com armas. Algo a que fui acostumado desde cedo. De outro, a compreensão de que aquelas armas provavelmente foram apontadas para outras pessoas. Atirei lembrando da primeira parte, como se estivesse matando um pouco as saudades do meu pai, mas saí dali me sentindo péssimo. Como eu disse: a guerra é uma merda.
Ainda tivemos tempo para mais uma excursão: o delta do rio Mekong. Além de fazer alguns passeios de barco, visitar uma pequena vila, colocar uma cobra no pescoço e conhecer uma fábrica de balas de coco, acordamos cedo na cidade de Can To para fazermos um conhecido programa matutino: ir ao mercado. Só que dessa vez era um mercado diferente: era o mercado flutuante. Os barcos maiores, repletos de mercadorias, vendem aos barcos menores, de pequenos distribuidores e outros empreendimentos, como restaurantes e hotéis. Para identificar o produto que vendem, os barcos colocam um exemplar em um mastro, como se fosse uma bandeira. E o melhor, o mercado não vende aos turistas, o que garante a paz necessária para ver e fotografar o local. Valeu o passeio.
Voltamos a Ho Chi Minh City para de lá pegar o avião para nosso próximo destino, o Camboja.
A visita ao Vietnã foi fantástica. Foi bom ver um povo com uma história recente tão triste tentando sorrir e dar a volta por cima. E, novamente, encontramos nos povos mais sofridos a mais calorosa recepção. Em poucos lugares fomos tratados tão bem. Fica aqui um obrigado aos vietnamitas.