África

África do Sul

Aventuras e despedidas na África do Sul

A expectativa em relação à África do Sul era extremamente diferente do restante do continente. Esperávamos certa civilização, o que de certa forma viria de bom grado depois de tantos meses nos precários países centrais, e algumas aventuras mais sofisticadas, como mergulho com tubarões e bungee jumps.  

A primeira expectativa concretizou-se rapidamente. Já na fronteira, quando a estrada de terra moçambicana dá lugar ao pavimento sul africano, ficou claro que se tratava de outra África.  

Seguimos rapidamente para a cidade Hluhluwe, possuidora de uma reserva natural de mesmo nome. Dormimos em uma agradável pousada e acordamos cedo. Nossa idéia era cruzar o parque Hluhluwe porque ele ficava exatamente no caminho e seria bom voltar a procurar animais.  

Entramos no parque até que animados, mas não durou muito. Entendemos então motivo da badalação sobre os parques da Tanzânia e do Quênia: a quantidade de animais. Depois de meia hora rodando com olhos atentos, nossa coleção não tinha aumentado nada além de alguns antílopes meia-boca. Ficamos conformados e seguimos rodando. Íamos curtindo mais a paisagem do que os animais, quando encontramos alguém que fez valer a entrada do parque. No meio de uma imensa poça de lama descansava um pré-histórico rinoceronte. Valeu à pena, pois o que tínhamos visto na cratera da Tanzânia estava longe demais. Ficamos fotografando o malandro por uns vinte minutos e saímos mais felizes. O resto do parque continuou como começou: vazio.  

Depois rodamos bastante, aproveitando as boas estradas sul-africanas. A civilização tem seus lados positivos: bom asfalto, boa sinalização, etc., mas também reduz muito o interesse do entorno. O jeito então era aumentar a música e aproveitar para relaxar. Nessa hora, percebi que o Pezão estava perdendo a potência em giros mais altos. Achei estranho e coloquei isso na conta de um possível combustível ruim do Moçambique.  

Assim chegamos a Kingsburg, uma pequena cidade no litoral. Sabíamos que a África do Sul é um dos países com melhor estrutura para acampar no mundo, então começamos a buscar os campings indicados pelo GPS. Não nos decepcionamos – paramos em um camping incrivelmente estruturado e barato. O banheiro era impressionantemente limpo. A Du voltou de lá espantada, porque tinha visto que havia duas banheiras de hidromassagem disponíveis. Aproveitamos bem e ficamos duas noites curtindo a piscina e cozinhando de tudo no Pezão.  

Continuamos rodando pelo litoral do Índico, não sem antes colocarmos um Diesel novo. Era dia 20 de janeiro, exatamente um ano depois da nossa saída! Olhamos para trás orgulhosos após ter passado por tanto chão. Nosso próximo destino era Umkomaas, uma cidade indicada por Ryan e Claire para fazermos um emocionante mergulho com tubarões. Dezenas deles, e nós sem a proteção de uma gaiola, sendo alimentados pelo guia, no mesmo estilo das raias em Belize. Porém, pouco depois de pegarmos a estrada, o Pezão engasgou mais uma vez. Reduzi a marcha e consegui chegar com ele na entrada de um posto. Em poucos segundos a junta médica estava em volta do carro: dois frentistas, um teórico mecânico, eu e BJ, um figura gente boa que chegou no posto em outro Defender. Muito falatório, muitas opiniões sobre o problema, mas quem ajudou mesmo foi BJ, levando-nos até um mecânico na própria Umkomaas. Eu já havia trocado o filtro de Diesel, mas foi só olhar para o antigo para ver que ele não era o problema. Como mágica, o Pezão voltou a funcionar. O mecânico fez uma cara de satisfeito, colocou a culpa também em um possível combustível ruim e fomos embora. Antes de nos despedirmos de BJ, perguntei o que ele fazia como trabalho: “Trabalho em uma operadora de mergulho.”, respondeu ele! Novamente a Dona Coincidência brincava com a gente. Falei para ele que estávamos lá justamente para mergulhar com os tubarões e ele, animadamente, nos indicou o local da operadora dele, sendo que eles tinham também um pequeno hotel a duas quadras do mecânico. Hospedamo-nos lá e combinamos o mergulho para o fim de semana, quando eu disse que ia pagar a cerveja que devia a ele.  

Porém, depois de tirar as bagagens do Pezão, olhei para ele totalmente desconfiado da cura milagrosa que ele tinha recebido. Peguei as ferramentas e comecei futucar. Guia de mecânica em uma mão e chaves de boca na outra, fui testando a linha de Diesel. Dissessem o que dissessem, estava claro para mim que era falta de Diesel. Vi no guia que havia um procedimento para retirar o ar do sistema através de um parafuso que funcionava como purga, localizado na tampa do filtro de combustível. Porém, quando eu afrouxava o parafuso, nenhum Diesel saía, o que ia de encontro com o que dizia o livro. Nessa de colocar e retirar o parafuso, eu consegui a proeza de fazer entrar mais ar no sistema e, pior, consegui espanar a rosca da tampa, o que me deixou fulo da vida comigo mesmo. Coloquei o motor para funcionar novamente, purgando o ar através dos bicos injetores e, passando uma fita no parafuso, fui dar uma volta com ele. Não deu outra, o Pezão deu problema de novo. Ele não chegou a parar, mas estava claro que havia um problema diferente de somente um combustível ruim.  

Falei com o pessoal da pousada e novamente BJ foi em nossa salvação, não só conseguiu um mecânico especializado na cidade de Durban, como nos rebocou até lá. Apesar de o Pezão estar ligando, era óbvia estupidez sair para rodar 55 km.  

A chegada do Pezão na oficina (que, por sinal, era fantástica) foi triunfal. Todos os mecânicos vinham dar uma olhada nele e adoravam as adaptações. Com todos aqueles Land Rovers em volta me senti confiante, como se tivesse chegado com um filho enfermo ao Hospital Albert Einstein.  

Pouco depois estávamos mergulhados no capô aberto do Pezão. O diagnóstico foi rápido: bomba primária de combustível. Fiquei duplamente feliz. Primeiro, porque fazia sentido para mim. Segundo, porque era fácil de trocar e eu tinha uma reserva comigo. Enquanto um mecânico trocava a bomba, eu pedi para outro verificar as pastilhas de freio, algo que vinha querendo fazer há muito tempo. E com razão! Uma das pastilhas estava nas últimas, e ia começar a arrebentar o disco em poucos dias. Mais um ponto para a sorte do Pezão!  

Trocamos as pastilhas e a bomba. Agora, é só ligar. “Pronto! Funcionou! Tudo certo!”, comemoramos. Mais ou menos: o Pezão voltou a morrer, com bomba nova e tudo. Olhei para o mecânico e ele fez aquela cara de desânimo, estilo voltamos-a-estaca-zero.  Ficamos retirando o ar do sistema e fazendo o Pezão voltar a funcionar, em busca do que estava acontecendo. Pouco depois de ficar um pouco ligado, o filtro voltava a ficar cheio de ar e o motor morria. Algo ficou claro: havia uma forte entrada de ar no sistema antes do filtro. Isso era, de certa forma, bom, porque diminuía o risco de ser a bomba injetora e a solução poderia ser extremamente banal, como um furo em uma mangueira ou um simples entupimento. O problema agora era outro: achar a entrada de ar.  

Ficamos nessa busca até o final do dia, sem sucesso. Examinamos e testamos toda a linha de combustível, desde o pré-filtro (water trap) até a chegada no motor. O Pezão sempre voltava a ficar com ar no sistema. Não tivemos opção senão desistirmos, porque eles precisavam fechar a oficina. Além de tudo era sexta-feira, o que significava que teríamos que esperar até segunda-feira para recomeçar os testes. Paciência. Seria um final de semana inteiro com nosso amigo no hospital.  

Passamos um final de semana relaxado. Como a chuva era incessante, a baixa visibilidade da água contra-indicava totalmente o mergulho com os tubarões. Aproveitamos para ficar na internet, descansar e comer bem.  

Na segunda-feira cheguei à oficina ao final da manhã. Tínhamos combinado de retomar as buscas junto ao tanque de combustível, e quando cheguei à oficina ele já estava fora do carro. “Boas notícias!”, me recebeu o sorridente mecânico. “Achamos o entupimento! Uma das mangueiras, a que fica logo na saída do tanque, estava completamente entupida. Limpamos a danada e agora aposto que vai funcionar!”. O mecânico era só sorrisos.  

Duas horas mais tarde o Pezão estava pronto para o teste. Ligou! Mas, e o ar? Abrimos levemente o parafuso da purga do filtro e, dessa vez, começou a pulsar uma pequena quantidade de Diesel. Estava claro para mim que o problema estava resolvido. Saí da oficina confiante e ainda mais entusiasmado com o Pezão. Não tinha ocorrido nenhuma falha mecânica, somente um entupimento por sujeira. Ao contrário, a política preventiva de trocar o filtro com maior freqüência me pareceu extremamente eficiente, pois nenhuma parte do motor foi danificada. Ponto pro carro das neves!  

Dormimos em Umkomaas mais uma noite, nos despedimos dos nossos novos amigos e partimos no nosso renovado parceiro. Nosso objetivo era conhecer a famosa Garden Route, uma das regiões mais bonitas do país. Até nosso primeiro destino, Jeffrey’s Bay, eram mais de mil quilômetros de estradas, então paramos para dormir em Kokstad e Gonubie, sem grandes novidades. Ao final da tarde do terceiro dia, chegamos a Jeffrey’s Bay e entendemos o porquê da fama da cidade: uma praia espetacular.  

Paramos em uma pousada repleta de gente muito jovem, principalmente surfistas. Com o Pezão estacionado com a barraca aberta em frente à porta de entrada, viramos a atração do local. Todo mundo vinha falar com a gente e perguntar sobre a aventura. Os jovens olhares, inclusive de alguns brasileiros, brilhavam com as histórias e invariavelmente nos despedíamos ouvindo um “um dia faço uma viagem dessas!”. Esperamos que sim. 

Apesar de a praia ser muito bonita, Jeffrey’s Bay não era “a nossa praia”. Isso porque a água era muito, mas muito, fria. Animamo-nos em seguir viagem, em direção a um local chamado Nature’s Valley. Antes, no meio do caminho, estava ela, A ponte. Que ponte? A ponte Bloukrans. E o que tem ela? Nada... Somente o maior bungee jump do mundo! Com uma queda livre de 216 metros de altura, esse bungee jump é considerado o mais alto do planeta, e estava a duas horas de distância.  

Depois de fazer alguns saltos de pára-quedas, eu sabia que somente um mega elástico poderia me animar a me jogar de uma ponte. E não estava errado! Já na chegada, ao olhar para a altura da ponte, cerca de quatrocentos metros, não tive dúvidas que iria pular dali. A Du arremeteu e ficou somente na filmagem... E lá fui eu! Prometendo para ela que voltaria vivo.   

Após uma excitante pesagem, seguida pela colocação de uma espécie de boldrié, e depois pela caminhada por baixo da ponte, cheguei com o grupo de saltadores à interessante estrutura montada embaixo da ponte. O nervosismo no pessoal era visível.

Chegou minha vez! Bati um papo animado com o figura que me colocava o elástico no pé e me concentrei para aproveitar o momento. Olhei meio ressabiado para a presilha nas canelas. Funciona como aquelas bóias de braço de criança, só que obviamente bem mais forte e resistente. O cara coloca bem apertado, e a força do elástico trabalha no sentido de apertar mais ainda, mas fiquei pensando se uma boa ensaboada não conseguia arrancar aquele treco pelos meus pés. “Bom, não arrancou de ninguém até agora”, ri. O caminhar para a beira é indescritível. Em poucos segundos, você está com os dedos dos pés margeando o concreto de uma ponte de quatrocentos metros de altura, sem nada nem ninguém à sua frente. Somente o peso do elástico te chamando para o fundo, como uma sereia. Contrariando a orientação do pessoal, sob ameaças do tipo “se desistir de pular paga assim mesmo”, fiz questão de olhar para baixo. Foi quando senti o coração pulsar forte... Sensacional! Um prato feito para quem gosta de adrenalina.  

Abri os braços que saíam da minha camisa da seleção brasileira de futebol e, sem conseguir segurar o sorriso, pulei com força para frente... Foi exatamente como eu esperava: o corpo acelerando junto com a gravidade, dando a impressão de não ter peso, e o vento aumentando gradativamente. Depois de um segundo, a minha expectativa foi superada. A queda não acabava e a velocidade do vento me fez colocar as palmas das mãos instintivamente na posição do pára-quedismo. Quando estava comemorando essa sensação... Vruumm! O elástico começou a esticar e a me puxar pelas pernas. “Segura direito, p.!”, gritava eu para a presilha nas minhas canelas. Confesso que fiquei aliviado quando o rio embaixo começou a se afastar, ao invés de se aproximar. A subida foi fantástica! Uma energia impressionante, com uma alucinante parada no meio do ar. Estômago de cabeça para baixo (ou seria eu de cabeça para baixo e ele para cima?) e nova queda, de uns cem metros. “Segura aê, mané!”. Alguns vai-e-vens a mais e a interminável espera de cabeça para baixo... “Se demorarem muito vou vomitar...”, sorri, satisfeito da vida.  

Ainda estava meio anestesiado quando encontrei a Du. Ela me abraçou forte, enquanto me contava eufórica como tinha sofrido vendo a cena. Não sabia como tinha conseguido fotografar. Sentamos juntos no bar do local para tomar uma merecida cerveja. Eu não conseguia parar de sorrir.  
Seguimos para o Nature’s Valley e ficamos acampados no meio do parque. O silêncio era fantástico, quebrado somente pelas minhas descrições para a Du da aventura de momentos atrás. Cozinhamos o jantar e dormimos pesado.

Pela manhã, fomos acordados por um barulho de panelas. “Tem algum macaco ou cachorro mexendo na louça de ontem”, a Du falou ainda sonolenta. O barulho parou e voltamos a dormir. Pouco depois... Croc-croc-croc... “Que foi isso?!”, acordamos de vez. Tive que sair para ver. O ar fresco deixava claro que era ainda bem cedo. Olhei e vi um pequeno macaco em cima da mesa de camping ao lado do Pezão. Resolvi descer e guardar a louça, que era a única coisa que tínhamos deixado fora do carro. Foi quando vi outro macaco com um punhado de espaguetes secos na mão, parecendo o jogo “Pega Varetas”, fazendo o tal croc-croc-croc comendo o macarrão cru. Olhei para a mata e ouvi croc-croc-crocs para todos os lados. Parecia que a mata estava falando. Procurei com calma e contei cerca de dez macacos, de todas as idades, comendo espetos de espaguete cru, no maior croc-croc-croc! “Como é que pode, se nós guardamos a comida?!”, falei comigo mesmo. Foi quando olhei para dentro do Pezão e vi a farra: três macacos dentro do carro, abrindo e bagunçando tudo o que vinham pela frente! “Du! Os malucos dos macacos arrombaram o Pezão e estão levando tudo!”, gritei sem conter o riso. Vi então que eu tinha esquecido uma das janelas semi-aberta, por onde eles tinham trânsito livre.  

Dei a volta e comecei a espantar os malandros. No meio da correria, uma reação interessante. Um dos menores correu para o lado errado e deu de cabeça no vidro do outro lado. Vendo a cena, outro um pouco maior se colocou entre mim e a porta, de pé, em uma pose parecida com boxe tailandês. Ele olhava para mim, sem avançar e sem fazer cara feia, e de vez em quando olhava para dentro do carro, buscando o mais novo. Admirei-me com aquela cena de parceria e recuei com calma. Dei a volta e vi o pequeno com as costas no vidro, se tremendo todo. Dei uma cutucada no vidro e mal pude vê-lo voando janela afora, tamanho seu medo e espanto. Achei bem legal. Subi de volta à barraca, depois de ficar mais tranquilo ao constatar que minha carteira ainda estava no Pezão, contabilizando para a Du o prejú: todas as frutas, alguns biscoitos e um pacote inteiro de croc-crocs.  

Como o tempo não estava um espetáculo, resolvemos seguir para o interior. A atração local era a cidade de Oudtshoorn, com seus avestruzes. A guinada na rota valeu à pena. Encontramos um ar extremamente seco, o que desfez as nuvens que teimavam em ficar nas nossas cabeças.  

Encontramos em Oudtshoorn uma cidade muito pacata. Tivemos também a sorte de achar uma pousada muito agradável e com bom preço, o que nos fez aumentar em um dia a nossa estadia. Saímos no primeiro dia para conhecer uma cachoeira próxima, mas a grande atração, sem dúvida foram as montanhas. Elas estão longe de serem simples montanhas, são artes plásticas da natureza. Suas alaranjadas camadas, expostas como massa folhada, foram dobradas por uma força descomunal até atingirem o sentido vertical em algumas partes. Paredes de mais de cinqüenta metros de altura fazem você se sentir como um grão de açúcar. Mais uma vez desisto dos adjetivos e apelo para as fantásticas fotos da Du. Voltamos para o hotel e separamos o dia seguinte para piscina, cerveja e diários de bordo.  

Antes de nos despedirmos da cidade, tínhamos que visitar um dos lugares símbolos da cidade: uma fazenda de avestruzes. Chegamos ao final da manhã, bem a tempo de pegar o próximo tour pela fazenda. Foi interessante ver esses animais de perto e se espantar com o fato de algo tão grande ser uma ave. Mais o melhor e mais engraçado foi montar um desses bichos. Sob a promessa enfática do nosso guia de que isso não faz mal aos animais, topamos arriscar uma volta nas aves. A Du foi primeiro, o que garantiu muitos gritos e risadas. Eu fui depois, me diverti, mas fiquei com pena do bicho. Apesar de grande, não era um cavalo.  

“De volta ao litoral!”. Seguimos novamente para as praias. Dessa vez, decididamente, em busca de mais aventuras. Rumávamos para Mossel Bay, um dos melhores lugares do mundo para tentar ver um tubarão-branco. Parecia-nos imperdível. Paramos em mais uma simples hospedagem e tratamos logo de perguntar sobre o mergulho com tubarões-brancos. Poucas quadras abaixo paramos em um tipo de dive center que fazia esse programa. Perguntamos sobre como funcionava e quais as chances de realmente vermos o bichano. As chances eram muito poucas, pois não estávamos no auge da temporada e as últimas saídas tinham voltado de mãos e máquinas fotográficas vazias. Olhamo-nos meio desanimados, mas não tínhamos chegado até ali para ficar em terra. Resolvemos dar à sorte aquela velha oportunidade de aparecer e topamos fazer o passeio no dia seguinte.  

Foi uma noite agitada, meio acordados pela expectativa do dia seguinte. Levantamos, pegamos as máquinas fotográficas e saímos cedo. Olhei para o céu. Seria um dia claro. Respirei fundo o inconfundível ar da aurora e pedi, olhando para o mar: “Vamos lá, Netuno. Um tubarãozinho só, por favor. Nada de mais, pode ser bem pequeno”. Ri de mim mesmo.  

Chegamos à empresa de mergulho e tomamos café-da-manhã, em meio à ansiedade criada pelos vídeos de tubarões que passavam na televisão. Pouco antes das nove da manhã, um funcionário parou o vídeo para explicar como seria a brincadeira. Mais do que entrar nos esperados detalhes sobre como funcionava a gaiola e coisa e tal, o ponto mais falado era a pouca chance de realmente vermos o tubarão: “SE a gente vier e encontrar o tubarão irá acontecer isso e aquilo. SE o tubarão aparecer... SE dermos sorte dessa vez...”. Começou a me parecer impossível.  

Saímos em direção à marina, todos com a certeza de que veríamos tanto tubarões-brancos quanto marcianos de máscaras e snorkels. Começamos a navegar, admirando a gaiola e torcendo para não voltamos com ela ainda seca. Uma vantagem apareceu logo de cara: o primeiro local para ver os peixões era bem perto, a uns trezentos metros da costa e a pouco mais de vinte minutos da marina. Era uma ilha, chamada de Ilha das Focas. Bastava olhar para a ilha para entender porque os brancos passeiam por ali: centenas de focas pegando sol. Era uma espécie de restaurante self-service para tubarões. Paramos nesse ponto, colados na Ilha da Focas, e começamos o circo: sopa de peixe para um lado, isca para o outro e muita paciência. Depois de alguma espera, duas focas vieram checar o que fazíamos. Imaginei o quanto um tubarão devia estar longe para aquelas focas estarem de bobeira por ali.  

Foi aí que começou a virar programa de índio. O impaciente mar, que estava batendo um bocado, junto com o delicioso cheiro dessa sopa para tubarão, começaram a fazer todos no barco passarem mal. Fomos para a proa para tentar melhorar a situação, quando alguns pequenos tubarões-martelo animaram o ambiente. Depois de quase meia hora esperando... Nada. A Du começou a ficar sem som nem imagem e eu comecei a achar que era melhor ter ficado em terra.  

O malandro que estava encarregado da turistada deu as caras para avisar que esperaríamos por mais meia hora e se não pintasse nenhuma barbatana e nenhuma trilha sonora estilo Spilberg iríamos para outro ponto. Meia hora depois o único tan TAN tan TAN tan TAN que parecia haver pela área era o estômago de uma malandro que vomitava horrores.  

Saímos dali em direção a outro ponto, perto da barreira de corais. Eu já estava totalmente desiludido e conformado, e começava a engrossar o coro dos que desejavam realmente estar em terra. A navegação foi rápida, perto de vinte minutos, e, quando chegamos, percebi que havia alguma movimentação. Um barco bem menor, sem gaiola, estava ancorado perto do coral. Começamos a nos aproximar, agora bem devagar, quando finalmente conseguimos ver que todos observavam na popa do barco uma espécie de cilindro prata brilhante. Quando chegou um pouco mais perto vir que era... Um imenso tubarão-branco! Ele estava com a cara e metade do corpo para fora da água, agarrando um pedaço de peixe do tamanho de uma bola de basquete. Inacreditável! Netuno ouviu nossas preces!  

O cenário mudou por completo! Correria, baldes de sopa de peixe cru espalhados por todos os lados, iscas na água e gaiola em movimento. “Todo mundo colocando a roupa! Vamos entrar na água!”. Meu coração bateu forte! A Du não teve nem tempo de decidir se ia ou não entrar na água, como ela tinha dito que ia fazer. Saiu colocando a roupa de mergulho em meio à gritaria dos tripulantes.  

Tchumpf! Gaiola na água. Olhei para o barco ao lado e vi que estávamos tentando “roubar” o tubarão deles. Quando estava de roupa pronta e ajeitando a máquina, vi o capitão conversando com o barco ao lado. Pareciam bastante amigos e vibrei com a frase do comandante ao lado: “Nós já terminamos por aqui. Ele é todo de vocês!”, saindo com a embarcação. Depois vim a saber que era um barco com cientistas.  

“Pra água! Pra água!”, continuava a gritaria. Olhei para a Du e ela estava parecendo o tal marciano de snorkel: roupa de mergulho e totalmente verde. Ela não teve nem tempo de falar: correu para a lateral do barco e começou a vomitar. Fiquei do lado dela, enquanto o pessoal entrava na gaiola. Pedi para uma cientista que estava a bordo dar um help para a Du e corri para a gaiola. A gaiola ficava presa ao barco, com dois terços para dentro da água e um terço para fora. O mar, batendo um bocado e fazendo a tarefa de jogar a gaiola para cima e para baixo, transformou o cenário em uma espécie de mini caos marinho. Eu me sentia naquela pesca de caranguejos no Mar do Norte.  

A Du, melhor depois de vomitar, logo se juntou ao time. Depois de uns cinco minutos parados ali, ou pelo menos tentando ficar parados, em uma água fria de lascar, e sem aparecer o tubarão, pensei: “Ah, agora sim! Se depois desse tumulto o tubarão foi embora esse programa vai bater todos os recordes de maneirisse!”. Comecei a olhar melhor a gaiola e entender o que tínhamos ali: ela devia ter quase dois metros e meio de altura, o que fazia com que ficássemos com a cabeça dentro da água se colocássemos os pés no fundo. A solução era usar uma barra um pouco mais alta para colocar os pés e segurar em outra bem à nossa frente. Com as costas apoiadas no lado que batia no barco, ficávamos meio que sentados. Na dúvida, deixei a câmera gravando. Enfiei a cara na água e vi que a visibilidade era bem ruim, acho que quatro ou cinco metros.  De repente...  

“Abaixem! Abaixem! Tubarão vindo pela direita! Todo mundo pra baaaaixooooo”. Prendi a respiração e enfiei a cabeça na água. “Onde? Onde, p.?!”. De repente passa pela nossa frente a isca que o cara usa para guiar o tubarão, o tal peixe-bola-de-basquete. Mal tive tempo de ver a isca batendo na gaiola quando apareceu a cara bicuda e dentada na nossa frente! Ele foi direto na grade da gaiola e mordeu com força! Era tão grande que não dava para ver direito a sua calda, desaparecida na baixa visibilidade. Foi o tempo de ele arremeter o ataque à gaiola e todos os mergulhadores subirem para respirar. “Você viu AQUILO?!”, a Du gritava! “Não estou acreditando! Ele atacou a gaiola! Você filmou?”. Eu só conseguia gargalhar! Tínhamos chegado aos Big Seven da África! Não sabia exatamente o que tinha filmado, fiquei muito mais preocupado em não perder a mão.   

Não deu tempo nem de comentar muito: “Pra baixo! Pra baixo! Tubarão vindo pelo centro! Todo mundo pra baaaaixooooo!”. Dessa vez desci com mais calma. Prestei atenção em onde colocar o pé e achei uma posição muito boa. Posicionando o ombro embaixo de uma das rígidas bóias que seguram a gaiola, consegui colocar os dois pés no fundo da gaiola e forçar para cima, ficando assim preso. Então consegui soltar as duas mãos das barras e ficar parado, mesmo com as ondas grandes. Perfeito para filmar! Foi o tempo de comemorar a liberdade de movimentos e ver o peixe caçador vindo de frente. Novamente ele foi de encontro à grade e, quando passou pela bóia da lateral bem do meu lado, deu-lhe uma mordida, sacudindo tudo!, e foi embora. Novamente subimos juntos e novamente foram aqueles: “O que que foi isso?!”, “Viu a mordida?!”. Eu sabia que, dessa vez, tinha conseguido filmar.  

Ficamos nessa aventura de sobe, respira, desce, vê ser pré-histórico na água, filma, por uns vinte minutos, e comemoramos a mais de dez passagens que foram feitas por três diferentes tubarões-brancos. Foi o suficiente para um malandro ao lado começar a vomitar dentro da gaiola. Realmente não precisava de mais aquela, mas o cara não teve muita opção. Nossa sorte é que ele vomitou tantas vezes que não saía mais nada. Comecei a ver que quem ia vomitar era eu, o que não seria nada agradável, tendo em vista que o meu café da manhã estava praticamente intacto no meu estômago.  

Acabou a brincadeira. Saímos da gaiola vibrando com a experiência e começamos a navegar de volta. Fomos para frente e meu mundo ainda balançava. Não teve jeito. Vomitei debruçado no peitoril. E eu tinha razão em relação ao café-da-manhã. Passamos a tarde lembrando da aventura e contando o acontecimento pela internet.  

Saímos de Mossel Bay em direção ao nosso destino final no país, a conhecida Cidade do Cabo. Além das atrações de sempre, essa cidade nos aguardava com mais uma expectativa: íamos ficar hospedados na casa de Sandra e Boris, nossos amigos motoqueiros do norte da África. Mal podíamos esperar para encontrá-los e contar e ouvir as histórias das últimas aventuras depois da nossa despedida no Quênia.  

A Cidade do Cabo também reservava a despedida do Pezão das grandes aventuras. Tínhamos decidido fazer a etapa da Oceania e Sudeste Asiático sem ele, pois a logística de envio por essa região não seria muito produtiva. Sentíamos na pele a tristeza daqueles últimos quilômetros. A certeza da futura saudade que sentiremos dessa época nos dava um aperto tão grande quanto o tamanho dos países cortados pela nossa rota.  

Chegamos rapidamente à Cidade do Cabo, ainda a tempo de passar em um supermercado e não chegar de mãos vazias. A nossa recepção por eles foi fantástica. Tínhamos um jantar especial para nossa chegada e o papo rolou solto com eles e com um amigo que também estava de guarida por lá, Felix.  

A estadia na Cidade do Cabo foi inesquecível. O verão é inesperadamente a estação seca da região, o que garantiu um Céu de Brigadeiro para quase todos os dias. Aproveitamos para rodar pela região e conhecer tanto as cidades vinícolas ao redor, onde dormimos na charmosa Franschhoek, como o Cabo da Boa Esperança. Aproveitamos também para descansar bastante, matando as saudades de um clima de casa, e para comer muito bem, cozinhando no almoço e saindo para jantar, a maioria das vezes com Sandra e Boris. Fomos três vezes a restaurantes japoneses! Não víamos um desde Miami.  

Subimos na Lion's Head e na famosa Table Mountain, fomos a um show do U2 no estádio da abertura da Copa e a um concerto ao ar livre no Jardim Botânico da cidade. A Cidade do Cabo é realmente especial.  

Aproveitamos também para agitar o envio do Pezão para o Brasil, que foi um capítulo à parte. Nossa idéia era mandar direto para o Brasil, mas a burocracia junto à alfândega, mesmo em se tratando de um carro brasileiro, pareceu tanta que resolvemos que o carro seria enviado para Buenos Aires, na Argentina. Só que isso não poderia ser feito agora, pois teríamos que estar presentes na chegada do Pezão. Paciência. Tivemos então que contratar uma armazenagem e programar uma volta à Cidade do Cabo, depois da Índia, para enfim enviá-lo para a Argentina. Não seria tão mal assim voltar por lá.  

A única parte ruim foram os arrombamentos no Pezão. Por duas vezes entraram no carro e levaram o que tinha dentro. Na primeira, perdemos alguns bens valiosos, como GPS, rádio e filmadora. Mas a segunda só serviu para quebrar o vidro. Quem marcou ponto nessa história foram as caixas do interior do carro, que os picaretas não conseguiram arrombar mesmo forçando a fechadura. Bola pra frente.  

Depois de duas semanas com nossos amigos europeus era hora de ir embora. Primeiro, tive que levar o Pezão para o galpão onde ele ficaria guardado. Estacionei com cuidado e fiquei olhando-o. Começaram a chegar inevitáveis imagens do último ano, quando fomos os três praticamente inseparáveis: o período de conhecimento mútuo no Atacama, as serras da Colômbia, as escaladas aos picos dos vulcões da Costa Rica, as montanhas da Itália, os acampamentos ao ar livre no deserto Wadi Rum, os safáris na África... Tudo com nosso amigo ao lado. Nenhum restaurante vai algum dia conseguir nos marcar mais do que nossos jantares cozinhados de qualquer jeito e iluminados pelas luzes e pelo som do Pezão.  

Era hora de nos despedirmos do continente africano, aquele que ficamos por mais tempo. Foram mais de quatro meses entre seus desertos, suas savanas, seus animais e, principalmente, seu povo. Tínhamos que dar até logo também para nossos amigos e anfitriões. Boris e Sandra, acho que nunca conseguiremos retribuir sua hospitalidade. Morreremos de saudades dos nossos jantares e dos dias na Cidade do Cabo. Esperamos que um dia vocês venham ao Brasil para podermos equiparar pelo menos um pouco essa nossa dívida com vocês. Abraços e até a volta, em Maio!  

Embarcamos no nosso eterno voo até o outro lado do mundo. Nosso destino era a emocionante Nova Zelândia. Ao Pezão, nosso até breve. Que fique bem.