África

Etiópia

Cruzando a Etiópia em um turbilhão de emoções

Nessa etapa da viagem, mais do que qualquer outra até àquele momento, vivíamos em uma balança: de um lado, a empolgação e fascínio pelas imagens extremamente impactantes da sofrida população do norte da África; do outro, a batalha para melhorar a saúde e aumentar a disposição física. Assim foi por quase todo o Sudão, e assim seria também em praticamente toda a Etiópia.  

Porém, ainda não tínhamos entrado na Etiópia, então era hora de buscar energia do fundo do baú e cruzar a fronteira. Estávamos realmente apreensivos a respeito do nosso destino em função da história da carta da embaixada. E o começo não foi nada animador, pois na própria saída do Sudão, e as saídas normalmente não são problema, a lerdeza do pessoal para me dar o carimbo de saída do Pezão começou a drenar meu ânimo. Descobri o porquê: era domingo. Por isso, ninguém estava a fim de trabalhar e o empurra-empurra foi inevitável. Depois de sofrida hora e meia, conseguimos cruzar a ponte que separa os dois países.  

“Chegamos à Etiópia! Agora, chegar é uma coisa, passar é outra”. De cara, fomos abordados pelo “assistente alfandegário”. Dessa vez não ofereci resistência, pois tinha a esperança de que realmente ele fosse útil. Minha intenção era usar esse canal informal para ver as possibilidades que teria para “resolver” o problema da carta.  

Fui primeiro à imigração. Com os dois passaportes em mãos, mostrei os vistos e carimbei a entrada sem problemas. “Até aqui, tudo bem”. Já na saída da imigração, o “assistente” falou: “você vai precisar de uma carta da embaixada”. Respondi: “Pois é... As notícias voam. Já estou com a carta na mão”. Ele, um garoto dos seus vinte anos, me olhou com certo espanto e pediu para ver os documentos enquanto nos dirigíamos para a alfândega. Em meio segundo ele diagnosticou o que eu já sabia: “Essa carta não serve. Primeiro, tem que ser da sua embaixada de Addis Abeba, não de Karthoum. Segundo, aqui não fala nada sobre garantias ou responsabilidade da embaixada”. 

Falei com franqueza: “Parceiro, se imagine na situação de entrar na embaixada da Etiópia no Brasil pedindo uma carta dessas. Você acha que te dariam algo?”. Ele fez uma cara de quem concordava e continuamos andando. Chegando ao escritório da alfândega, ele estava fechado para o almoço. Percebi que teríamos que esperar por mais de uma hora.  

Durante a espera, ele mostrou a carta ao que parecia um colega de trabalho. Esse outro picareta deu uma olhada na carta e fez uma cara de bravo. O meu “parceiro” falou: “Cara, seu problema não sou eu, é esse outro aí. Mas conte comigo para resolver a situação”. “Pronto!”, pensei, “ainda entrei no esquema policial bom e policial ruim”.  

Resolvi usar uma das nossas cartadas para “azeitar” o processo. Levei-o no carro e mostrei as bolas de futebol e as camisas, dadas pela embaixada. Falei que um par seria dele, e o outro era para quem nos ajudasse a carimbar a nossa entrada. Ele pegou, animado, uma bola e uma camisa, mas se mostrou cético em relação ao pessoal que realmente resolvia dentro da alfândega. Ou seja, ainda não seria o suficiente.  

Com o outro “assistente alfandegário” me olhando feio, querendo bolas e camisas também, e com as lembranças do relato do pessoal que acampou naquela fronteira horrorosa por cinco noites, resolvi que iria dançar conforme a música deles e oferecer um dinheiro vivo para nos deixarem passar. Colaborar com processos de corrupção é extremamente desagradável, e temos tentado evitar isso ao máximo, principalmente nos achaques dos “policiais amigos”, mas, como falei antes, o grau de exposição na fronteira é significativamente maior do que nas ruas. E exigências esdrúxulas, como essa da carta, só aumentam a fertilidade do terreno para ações desse tipo.  

Chamei-o no canto e falei: “Parceiro, já passei por mais de trinta fronteiras, incluindo quase toda a América do Sul e América Central. Pode pedir pro seu amigo ao lado parar com esse jogo de cara feia. Me diga aí, quantos dólares são precisos para o cara carimbar minha entrada?”.  

Ele me olhou meio assustado, mas não escondeu certa felicidade por eu ter antecipado em algumas etapas todo o processo que ele montara. Ele ficou de ver o que poderia ser feito.  

Em meia hora, ele voltou dizendo que dava para ser assim, mas que seria um pouco caro. Eu já me preparava para pechinchar, quando ele mandou: “Trinta dólares”. Lembrei das potenciais cinco noites na fronteira e nem pestanejei. “Fechado. Que horas eu saio daqui?”.  

Cinco minutos depois de o pessoal ter voltado do almoço, estávamos com nosso Carnê de Passagem carimbado. O figura combinou de me encontrar do lado de fora, na estrada, para pegar a grana. Perguntei se ele garantia que eu não poderia ser parado mais à frente e encrencarem com o meu processo. Eu realmente não sabia se somente o carimbo no Carnê era suficiente e não tinha como confirmar isso. Ele, relutante, me falou que trinta quilômetros à frente havia um posto da alfândega e que poderíamos ser parados. “Então, parceiro, só te pago depois desse posto”.  

Ficamos no dilema de como rodar esses trinta quilômetros. Ele queria ir agarrado na lateral do carro, em cima do estribo. “Por trinta quilômetros?! Impossível!”. Depois de ele descartar a contratação de um tuc-tuc, vimos que a única solução seria ele ir atravessado atrás, em cima da geladeira e das caixas brancas.  

Partimos assim! O cara atravessado na horizontal, espremido, e eu a cinqüenta por hora. Até porque o figura, obviamente, não estava de cinto. A Du abriu toda a janela e ligou o ar no máximo. “Tá doida?”, perguntei. “Doida nada... Você não tem noção do chulé que está aqui do meu lado”. O “assistente”, educadamente, tinha tirado o tênis...  

Passamos pelo posto da alfândega sem problemas e finalmente pudemos comemorar a entrada de mais um país. Acabou sendo mais fácil do que imaginávamos. Ponto para as bolas de futebol e para os dólares americanos.  

Rumamos rapidamente para a primeira cidade, Gonder. Continuávamos em busca de um refresco para dar uma merecida pausa. A primeira aliviada veio na temperatura: com a subida para altitudes próximas dos dois mil metros, o termômetro finalmente esqueceu a casa dos quarenta graus e passou a oscilar nos confortáveis vinte e poucos. Uma felicidade inenarrável depois das areias do Sudão.  

Seguíamos interessadíssimos pela estrada. A paisagem mudou drasticamente e o verde começou a colorir novamente nosso pára-brisa. Íamos também um pouco apreensivos, pois ouvimos uma história sobre crianças que atiravam pedras nos carros. Conosco, isso não aconteceu, mas o ímpeto das crianças em nos pedir para parar e dar algo era realmente impressionante. Aos gritos de “Faranji! Faranji!” – uma tentativa local para “Foreign” – crianças de todas as idades corriam desesperadamente ao reconhecer o Pezão como um carro de viajantes.  

As pequenas mãos estendidas ficavam decepcionadas ao perceber que não pararíamos. Realmente é um dilema: por mais que seja tentadora a vontade de ajudar e dar pequenas coisas, não nos parecia correto. Não em função do que a Etiópia se transformara. A doação sistemática por parte dos carros viajantes acabou, aparentemente, criando uma espécie de profissão para os pequenos. As crianças ficam implorando na beira da estrada assim como as crianças brasileiras pedem em todo sinal de trânsito.  

Para quem vive no Brasil, é fácil imaginar a molecada se reunindo diariamente para ir à estrada para pedir uns trocados. Ao final do dia, cada um contaria o que recebeu. Ou seja, dar continuidade a esse processo era errado, mas como passar por todos aqueles pedidos friamente?... A pobreza à beira da estrada era chocante.  

A visita ao Sudão nos calejou um bocado, e parecíamos preparados para a Etiópia. Nesse primeiro contato com o país, vimos o bem que a água faz com uma comunidade. O verde trouxe consigo os animais e a estrada era simplesmente repleta de pastores e seus rebanhos. Gado, cabras e jumentos eram mais comuns do que carros e caminhões. Mas, ainda assim, os casebres feitos de palha e barro mostravam que a vida ali era muito dura. Mais tarde, os casebres de barro transformaram-se em casas feitas praticamente de lixo. É exagero pensar em uma casa feita de cascas de banana e outros orgânicos, porém, plásticos velhos, papéis e tecidos eram empilhados de maneira caótica na tentativa de criar um teto. Ainda não tínhamos conseguido entender qual seria uma reação razoável após vermos cenas como aquela. Certa tristeza foi inevitável. 

Chegamos a Gonder ainda imbuídos na missão de conseguir um pouco de conforto. Miramos no melhor hotel da cidade e praticamente imploramos por um quarto. Instalamo-nos e pensamos em não sair mais de lá por uma semana. O conforto do final da tarde e o bom jantar caíram como luvas e dormimos realmente muito bem nessa noite.  

A mistura das visões das crianças na estrada com uma propaganda de uma organização que trabalhava com órfãos nos fez tomar uma decisão que planejávamos havia tempo: “Vamos doar as bicicletas!”. Já tínhamos combinado em fazer isso. As bicicletas não estavam justificando seu espaço no carregado Pezão. Não conseguíamos ter energia para descer e andar nas bicicletas durante nossas rápidas paradas em cada cidade. Claro que as usamos algumas vezes, mas não nos parecia ser suficiente. Elas estavam simplesmente sendo destruídas na empoeirada traseira.  

A Du já tinha conhecimento de uma instituição no Quênia e já sabíamos que lá teríamos a chance de doá-las. Porém, combinamos também que as doaríamos antes se tivéssemos a oportunidade, principalmente porque sabíamos que péssimas estradas nos aguardavam antes de Nairóbi.  

A instituição que fazia propaganda no hotel constava no nosso livro-guia, o que facilitou muito na nossa convicção de que se tratava de algo sério. Entramos em contato por telefone no dia seguinte e combinamos em fazer a doação.  

No meio da tarde chegamos ao escritório da Yenege Tesfa, que significa “Esperança para o amanhã”. A singela instituição, fundada por uma jovem, chamada Nigisti, consegue fazer muito para, infelizmente, poucas crianças. O trabalho é um exemplo e tanto. O principal que conseguiram foi descolar dois barracos para servir de teto para a garotada. Um para os meninos e outro para as meninas. Trinta e dois no total, igualmente divididos entre meninos e meninas.  

Nesse momento, observando Nigisti explicar o que mais eles conseguiam realizar para as crianças, como incentivos à educação, algumas aulas com temas profissionalizantes, etc., percebemos o quanto essa forma de ajudarmos era melhor do que simplesmente darmos dinheiro pelas estradas. Nessa mesma hora, conhecemos dois obstinados ciclistas ingleses, Dan e Ken, que estavam cruzando a África na base do pedal. Tinham, incrivelmente!, passado inclusive pelo Sudão. Nem perguntei como. Não há resposta para isso.  

Por pura sorte nossa, e azar das crianças, esse era o dia de despedida dos ciclistas. Nossa sorte porque fomos convidados para a festa de despedida, o que aconteceria em um dos abrigos. Aceitamos o convite na hora.  

Nigisti foi no Pezão conosco e pudemos conversar um pouco mais. Durante o trajeto, de pouco mais de dez minutos, ficamos sabendo que os ciclistas estavam de passagem pela Etiópia e, por acaso, conheceram o programa dela. Resolveram ficar um pouquinho para dar umas ajudas aqui e ali, e acabaram ficando por incríveis três meses. Isso explicou a frase dela para eles minutos antes: “As crianças vão chorar hoje...”.  

Foi um turbilhão de emoções. Primeiro, entrar com o Pezão na favela local. Tendo em mente o quanto pode ser perigoso uma incursão errada em uma favela do Brasil, fiquei receoso com nossa segurança. Não sabia se havia tráfico na área, mas considerava isso mais do que possível, e sim provável. Depois, a pobreza em si: crua, nítida e próxima. Apesar de morar no Rio de Janeiro, nunca tinha tido a oportunidade de chegar tão próximo de uma área tão precária. Pelo menos não depois de ter um olhar mais crítico sobre o mundo. Por um momento, pensei na incoerência pessoal de ter que viajar tanto para ver algo tão comum para quem mora no Rio de Janeiro.  

Quando paramos o carro fomos imediatamente envolvidos por elas, as crianças. Em uma sufocante mistura de curiosidades e pedidos por qualquer coisa, fomos tentando chegar à casa dos órfãos. Como absorver facilmente tanta carência dirigida a você, um desconhecido, por crianças tão pequenas?  

Após passarmos o portão, o turbilhão deu uma trégua. Amparadas pelo trabalho e pela atenção do programa, as crianças do abrigo demandavam a atenção de uma forma muito mais calma. Não havia o desesperado pedido no olhar.  

Já na entrada aconteceu, para mim, o momento mais emocionante: a calorosa recepção dos dois ciclistas pelas crianças. Algo totalmente mágico. Mais do que cumprimentos, eles realmente trocavam profundos afagos. Um deles abraçava e levantava cada criança, uma a uma. Todas aguardavam ansiosas por sua vez. A sinceridade nos sorrisos de todos os lados era tocante. Por um momento, senti inveja dos dois. Tinha noção do quanto aquilo deveria representar em crescimento humano, e gostaria de estar tão descontraído como eles ali. Mas não estava. Isso não se conquista em três minutos. Em três meses, quem sabe?  

Outra impressionante cena que presenciamos ocorreu quando as crianças começaram com a música e com a dança. De imediato, pudemos evidenciar a origem do nosso samba e do candomblé. Quando a música e o ritmo das palmas ganharam vulto, o lado candomblé pesou e as danças tornaram-se quase hipnotizantes. O que mais chamava a atenção eram crianças de 6, 8 anos, dançando em movimentos bruscos com os ombros e pescoços no mesmo ritmo das batidas. Para mim, pareceu um pouco assustador. Para eles, só alegria. Gravamos em vídeo.  

Saímos de lá, ainda meio anestesiados, não sem antes tirar dezenas de fotos com as crianças que brincavam do lado de fora.  

Depois de Gonder, rumamos sul em direção à capital do país, Addis Abeba. Simplesmente desistimos de ir às Simien Mountains, atração do norte. A Du já estava sentindo os efeitos da altitude e do frio nos pouco mais de dois mil metros de Gonder. Não nos animava muito avançar para os mais de quatro mil da montanha. Ainda mais tendo que acampar a quase três mil. Somado a isso, vimos nas pesquisas na internet que, assim como os egípcios, os etíopes colocavam uma série de barreiras à visitação. Se você chegar no seu próprio carro, tem que contratar, obrigatoriamente, uma escolta e um guia. Se não tiver espaço no carro, o que era nosso caso, paciência, não pode entrar. Não tínhamos certeza se conseguiríamos lutar contra isso e entrar assim mesmo, mas simplesmente não queríamos arriscar. Isso acabou sendo uma tendência por quase toda a Etiópia: dificuldades criadas para o turista pagar mais por serviços desnecessários. E acabou sendo também nossa opção nessas situações: ao invés de sucumbir ao esquema, by-passar.  

Seguimos então o rumo de Addis Abeba, e a vida na estrada continuava um capítulo à parte para nós. A pavimentação continuou boa e a paisagem muito, muito bonita. As montanhas eram de um verde deslumbrante, mas as cenas de pobreza não davam trégua.   

As crianças continuavam seu trabalho na beira da estrada. Alías, trabalho duro não foi algo incomum de presenciarmos mesmo sem sair do carro. Crianças, adultos e velhos, principalmente mulheres, se revezavam para as lentes da Du carregando sempre muito peso nas costas ou equilibrado na cabeça de seus corpos incrivelmente magros.  

O Pezão continuava a chamar a atenção e nós a receber pedidos de dinheiro. Nessas regiões interioranas, é impressionante como a cidade estica-se longitudinalmente acompanhando a estrada. A impressão que temos é que quinhentos metros para fora da estrada já não há vida, enquanto que os casebres estendem-se por dezenas de quilômetros no sentido dela. Por isso, nossas paradas para o “banheiro” durante o dia eram bem difíceis. Tínhamos que procurar um lugar aberto, onde podíamos ter uma boa visão da redondeza para ver se não havia ninguém por perto. Não por vergonha, isso nós deixamos nas estradas da América do Sul, mas sim porque se houvesse alguém a quinhentos metros de distância de nós, e nos visse parar, ele simplesmente correria na nossa direção. Outra conseqüência dessa dificuldade em sair do carro foi que a fotógrafa teve que se virar para registrar tudo pelas janelas e pára-brisas do Pezão. Difícil tarefa, mas, para mim, com um excelente resultado.  

Certa vez a Du pediu para pararmos para ela lavar umas maçãs. Como não se tratava de uma operação “banheiro”, não me preocupei muito e parei rapidamente. Para quê? Em meio segundo, eu tinha quase uma dezena de crianças aos berros na porta do carro com as mãos estendidas. Era uma gritaria e uma confusão extraordinárias. Comecei a distribuir umas balas e elas ficaram ainda mais excitadas. Recebiam a bala e não arredavam o pé, nem diminuíam a intensidade dos gritos. Diversas das crianças, algumas já um pouco crescidas, ficavam visivelmente olhando o interior do carro naquela confusão para ver o que havia dentro. Vi a máquina da Du e outros objetos cuja perda nos daria uma bela dor de cabeça. Comecei a gritar para a Du lavar logo as maçãs para sairmos dali. Nisso, apareceram dois adultos distribuindo tapas nas cabeças das crianças para, em seguida, me pedir balas também. Depois de dar uma mão inteira de balas para um dos adultos, conseguimos fechar a porta e sair fora. “Que loucura isso aqui!”, falamos ao mesmo tempo.  

Seguimos viagem, sem nos preocupar em nada a não ser em avançar até a capital. A mistura do desgaste da viagem no Sudão com a brusca mudança para a altitude da Etiópia, que trouxe uma secura no ar e um frio repentino, foi pesada para a Du. Somando com a medicação que estávamos tomando para tentar prevenir malária, a coisa degringolou.  Ela começou a tossir desesperadamente. Uma tosse seca e incessante. Ao mesmo tempo, as horas de direção estavam ficando cada vez mais longas para mim. Estava cada vez mais claro que precisávamos de uma pausa.  

Depois de dormir em Bahir Dar e Debre Markos, chegamos a Addis sem maiores problemas. A cidade é um tanto quanto caótica, mas um paraíso se comparada ao Cairo. O problema ficou pela qualidade do ar. Como ela é extremamente poluída, não foi o local ideal para a Du melhorar. A tosse era insistente.  

Resolvemos ir a um médico local. Achamos um clínico geral, cuja consulta custou pouco mais de três dólares. Ele praticamente não examinou a Du, restringindo-se a ouvir os pulmões. Disse que era um quadro alérgico e concordou que ela tomasse um remédio que tínhamos em mãos.  

Dois dias depois iríamos encontrar a Sandra e o Boris, os motoqueiros que conhecemos no ferry para o Sudão. Tínhamos combinado por email de fazermos o sul da Etiópia juntos. Porém, a Du não melhorava.  

Ficamos de molho no hotel durante esses dois dias. A Du melhorou um pouco. Aproveitamos para conhecer Vanessa, uma brasileira que a Du estava falando pela internet e que também está fazendo, com o namorado, uma viagem longa. Combinamos de almoçar em um restaurante italiano que eles gostavam. Foi um almoço incrível. Primeiro, porque a comida era boa e barata. Segundo, porque embalamos em uma conversa, em português!, que nos fez esquecer da hora. No meio da conversa, já havia escurecido. Ainda antes do fim nosso papo, já podíamos ver pessoas sentando para o jantar. Foi realmente muito agradável.  

Saímos do restaurante e fomos encontrar o Boris e a Sandra. A Du voltou a tossir bastante. Porém, como estávamos confiantes de que ela melhoraria, confirmamos com eles o início da viagem ao Omo Valley para o dia seguinte.  

Nos encontramos no local combinado. Seguimos por estradas extremamente tranqüilas. Tínhamos um bom tempo sobrando, então seguimos em um ritmo lento e seguro. Chegamos à cidade de Jima. As ruas empoeiradas e os hotéis bem simples mostravam claramente o quanto estávamos imergindo na simplicidade etíope. O hotel tinha restaurante, um luxo. Pareceu-nos uma boa oportunidade de comermos sem usar nosso estoque. Fizemos nossos pedidos e a Du optou por um frango desossado frito. Muito azar. Quando o frango apareceu, foi impossível esconder o espanto. Eu nunca tinha visto um frango à milanesa feito somente de pele. Era, realmente, somente a pele frita. Não tinha carne! A Du ficou remexendo o bichano para lá e para cá e comeu, triste, os acompanhamentos. Como ela não quis pedir outra coisa e eu tinha pedido espaguete com molho de carne, não pude ajudar muito. Fomos dormir um pouco preocupados com a saúde dela.  

O nosso quarto tinha duas camas de solteiro. No meio da noite, a Du teve um ataque de tosse impressionante. Assustada, ela passou para a minha cama e ficamos juntos conversando. Avaliamos a situação e decidimos: “Vamos voltar para Addis”. Não tínhamos condição de avançar mais dois dias de viagem em direção à precariedade e isolamento com a Du desse jeito. Ser pego de surpresa por uma doença em um lugar distante é uma coisa, mas não estávamos com falta de avisos. Era a famosa tragédia anunciada.  

No dia seguinte encontrei os motoqueiros no café-da-manhã e falei da nossa decisão. O problema é que eles estavam contando com o suporte do Pezão para fazer esse trajeto. Era muito perigoso seguir sozinhos e sem muitos mantimentos. Durante um tempo eles pensaram nas possibilidades de seguir, mas, felizmente, o bom senso, principalmente da Sandra!, os fez desistir e seguir por uma rota mais próxima da estrada principal. Nós começamos nossa volta à poluída Addis.  

Chegamos ao final da noite com um problema: um encontro de chefes de estado do leste africano causou o colapso da rede hoteleira. Não tínhamos onde ficar e precisávamos de certo conforto, principalmente para a Du. Fomos direto ao hotel onde tínhamos ficado na primeira vez e onde fizemos bons amigos. Estava lotado também. Começamos a telefonar para mais hotéis e procurar na internet. Conseguimos um quarto pela internet, mas ficamos extremamente desconfiados de que não iria dar certo, pois estávamos reservando para o mesmo dia e já eram quase seis da tarde. Fomos ao hotel e não deu outra: estava lotado e eles não tinham recebido do site de agendamentos a nossa reserva. Começamos a reclamar adoidado e eles se perderam na explicação, tentando colocar a culpa no site. Enquanto a Du empombava com eles na recepção, eu ficava cuidando do Pezão. A rua estava interditada para a passagem da comitiva do presidente do Quênia, então nenhum carro poderia ficar estacionado na rua. Por outro lado, o Pezão não entrava na garagem deles. Ou seja, não tínhamos onde estacioná-lo. Acabamos colocando-o na frente da entrada da garagem, barrando a passagem. Voltei para a recepção.  

A Du estava envolvida com o pessoal que não sabia o que fazer conosco. Começaram a procurar outro hotel para a gente. Nisso, alguém me chamou porque um carro que estava na garagem tinha que sair. Desci e fui para o Pezão. Vi que a rua estava um deserto só – não passava nem um carro. Entrei e comecei a dar ré. De repente... Bam! Bam! Bam! Bam! Quatro pancadas secas e fortes na janela do lado do carona! Um militar baixinho, mas como uma cara de invocado, gesticulava como louco e gritava palavras incompreensíveis, mas que eu traduzi como: “Puta que o pariu, seu maluco! Tá a fim de me sacanear?! Não quero saber como, mas tira essa porra de monstro branco da minha frente!”. Voltei para frente, tranquei novamente a garagem, desliguei o Pezão e pensei: “Quero ver algum viado me mandar sair daqui agora!”. Fiquei esperando enquanto a comitiva passava. No fundo, achei interessante a abordagem do militar nanico. O cara realmente passou uma seriedade no “pedido” para eu voltar com o carro. Além do mais, as pancadas nem fizeram cócegas no Carro das Neves.  

Voltei para a recepção e para a discussão. Eles acharam um hotel. Fomos para lá e nos surpreendemos, pois era um hotel bem arrumado e não muito caro. Finalmente tínhamos um teto em meio ao caos.  

Porém, nunca acabam os espaços para as situações engraçadas. Fui estacionar o Pezão enquanto a Du subia para o quarto. Quando cheguei, ela estava meio pálida. “Tenho que te contar uma coisa...”.  

– O que houve?  

– Um cara ligou para cá e falou com uma voz trêmula: “I’m coming...”.   (Não tem jeito... temos que traduzir. Para quem não sabe, isso significa “estou gozando”!)  

- Cacete! Que cara louco! Vou reclamar na recepção depois. Não pode rolar isso de novo!  

Descemos para jantar e, enquanto esperávamos pelos pedidos, fui à recepção. Pedi para falar com a atendente privadamente e contei o que houve. Falei que não sabia se foi um hóspede ou alguém do hotel, mas seria legal que não acontecesse de novo.  

Ela ficou vermelha e pediu desculpas. Depois explicou que tinha sido um mal entendido: o cara não quis dizer “I’m coming” e sim “I’m going”. Ele queria saber se podia subir com o resto das bagagens. Comecei a rir e falei que tinha entendido que foi um erro por causa da língua. Falei para ela esquecer e comecei a rir novamente, só imaginando como contaria essa piada para a Du.  

Contei para ela e demos várias risadas. Quando estávamos quase esquecendo, o garçom, gente finíssima, mandou um “I’m coming!” de novo. Ele não entendeu porque rimos tanto da frase dele.  

Decidimos ir a um médico descente dessa vez. Pegamos uma ótima dica com a Sandra e fomos a uma clínica européia. Após um exame mais detalhado, incluindo algumas amostras de sangue, saímos de lá com mais receitas e com a certeza de que não era nada sério. Dois dias no hotel foram suficientes para a Du começar a se sentir melhor.  

Seguimos, não menos que finalmente, para o sul. Dormimos a primeira noite em Awasa. Na segunda, dormimos em Arba Minch, à beira do Lago Chamo. Resolvemos ficar o dia seguinte inteiro e fazer o primeiro contato com os animais africanos – o lago é moradia de crocodilos e hipopótamos.  

Ao final da manhã, estávamos nós em um pequeno barco a motor com o casco zebrado. Nosso capitão, timoneiro e guia tinha o nome que, traduzido, significava “ouro”. Olhei para o toldo do barco e lá repousava uma mosca do tamanho de uma cigarra. Mostrei pra Du: “Olha o tamanho da criança!”. Ouro entendeu e respondeu: “É a mosca Tsé-Tsé!”. Pronto! A tal mosca da doença do sono... Era só que faltava! Olhamos em volta e vimos que estavam em família. Ficamos alguns minutos na base da chinelada até elas desistirem de acompanhar o barco.  

Em menos de cinco minutos, chegamos à “praia” dos crocodilos. O animal pré-histórico é realmente impressionante. Ficamos observando e registrando por algum tempo, apesar do nervosismo da Du. Ficamos a menos de cinco metros de um animal de quase o mesmo tamanho.  

Depois partimos para o refúgio dos hipopótamos. Chegamos a uma pequena enseada que era a boca de um rio. Lá, uma dúzia de hipopótamos estava em um marasmo de qualidade. Isso até a nossa chegada. Gold se aproximou bem, e percebi que ele estava mais atento do que junto aos crocodilos. E, diferentemente de antes, ele não desligara o motor. Nós já tínhamos ouvido falar que os hipos são mais perigosos, e ele confirmou.  

Estávamos razoavelmente próximos, a uns vinte metros do grupo, que tinha inclusive filhotes. Nisso, vi dois grandes pares de orelha, que era só que víamos deles, afundar. Gold continuou em marcha lenta. Vimos uma lama se levantar do fundo bem próximo do barco. E o que era pior, a lama que emergia ia na direção da traseira do barco. Na hora, me veio um filme de terror na cabeça: dois hipos imensos facilmente virando o barco e os três dentro d’água. Olhei assustado pra Gold, que claramente tinha visto o mesmo filme, e vi que ele já estava com o manete do acelerador a toda. Após dez metros de distância, e com o barco embalado, as duas hipo-cabeças apareceram exatamente onde estávamos. Eles nos olhavam como que dizendo: “Na próxima, seus enxeridos, eu quebro vocês!".  

Gold, ainda meio nervoso, mandou: “Melhor a gente ir agora...”. Certamente! Virei para a Du e falei: “Dificilmente vamos passar por um risco maior nos safáris. Essa foi sinistra!”. Mas, deu tudo certo e passamos a tarde relaxando na pousada.  

Realmente desistimos de avançar para o interior do Omo Valley. Novamente as histórias a respeito da burocracia para entrar, somados ao circo de horrores que, ao que parece, as tribos transformaram-se, nos desestimulou. Pagar ingresso para entrar nas vilas, depois pagar novamente para fotografar, depois pagar para cada indivíduo a ser fotografado, parecia tudo turístico demais. Além do mais, as bizarrices que víamos nas pesquisas eram visivelmente criadas pelo pessoal local para atrair a atenção dos turistas e ganhar mais com fotos. Histórias pela internet deixavam claro que os nativos estavam criando realmente uma espécie de circo humano. Não estávamos nessa sintonia.  

Resolvemos descer rápido e entrar no Quênia. Pelas estradas, mais crianças pedindo dinheiro. Como essa parte atrai ainda mais turistas, a quantidade de crianças pareceu dobrar. E sua disposição para inovar também. Vimos as primeiras fazendo danças esquisitas e acabamos rindo. Depois, algumas pulando em um pé só e acenando com o outro pé. E por último o cúmulo de ficar de cabeça para baixo e acenar com um dos pés. Uma triste presepada. Passamos por elas ouvindo os gritos de “Money! Money! Money!” ou “Pen! Pen! Pen!”.  

Paramos na cidade de Yabello, já próxima o suficiente do Quênia para atingirmos a fronteira no dia seguinte. Paramos no início da tarde em um hotel bem simples, ainda sem almoçar. Fomos extremamente mal recebidos. Impressionante. O pessoal do hotel parecia realmente não nos querer ali. Com dificuldades em sermos atendidos, finalmente conseguimos pedir uma comida no restaurante. Para variar, a Du se estrepou e o frango dela veio parecendo um filme mais assustador do que o dos hipopótamos assassinos. Ficamos cabisbaixos... Não tínhamos energia para cozinhar e não tínhamos energia para comer os frangos da Du.  

De repente, um lampejo: “As comidas liofilizadas!”. Lembramos na hora que estávamos carregando, intocadas por mais de trinta países, comidas desidratadas de emergência. Tínhamos uma caixa inteira delas! E, como não íamos mais com o Pezão para a Ásia, as Liofoods estavam destinadas a voltarem ao Brasil ou à doação. “Ah... Vamos mandar algumas dessas!”. 

Começamos a lembrar, ainda sobre a mesa do esculhambado almoço, o cardápio que trazíamos: tínhamos arroz com feijão e frango desfiado, macarrão ao molho branco, estrogonofe de frango... “É a salvação!”. Pulávamos feito crianças.  

Voltamos para o quarto e pegamos a caixa da redenção. Comemorávamos cada pacote! Frango, arroz, feijão! Escolhemos dois pratos iguais e hidratamos para o jantar. Fizemos um verdadeiro balde de arroz, feijão, mandioca e frango desfiado.  

Agora... Vamos comer! Comecei empolgado. A Du, nem tanto. Depois, sucumbi: “É... Ela é exatamente o que se propõe a ser: uma comida de emergência”. Não era a salvação da lavoura. “Bom, vamos em frente”. Liofoods de volta pro Pezão. Ainda seriam úteis, certamente.  

Chegamos à cidade da fronteira, chamada Moyale, rapidamente. Decidimos cruzar para o lado queniano, com cidade do mesmo nome, e dormir por lá. Tínhamos um grande desafio pela frente: a pior estrada do mundo. Até onde tínhamos pesquisado, os primeiros quinhentos quilômetros após a fronteira eram simplesmente insuportáveis. Notícias de carros quebrando e de viajantes reclamando eram unanimidade. Mas, era inevitavelmente nossa rota, então, queríamos acordar já com a faina da fronteira resolvida para poder começar a tortura bem cedo e poder ir mais devagar. 

Cruzamos a fronteira após o almoço e achamos um bom hotel – total surpresa. Olhei para o Pezão e perguntei se ele estava pronto. “Amanhã é dia!”.
A Etiópia foi um conflito de percepções. Em alguns momentos, comento com a Du que a quantidade de situações que vemos é tanta, que algumas conclusões a que vamos chegar sobre isso tudo só virão com reflexões mais à frente.  

Por enquanto, nos resta encarar a pior estrada do mundo e as "liofoods do caminho.