África
Egito
Egito - interessante e quase insuportável!
O ferry da Jordânia para o Egito foi surpreendente. Viajamos confortavelmente por quase duas horas na lanchonete da embarcação e praticamente não vimos o tempo passar na companhia de Alan, Jackie e Gogo. Um salvador ar-condicionado, alguns sanduíches de frango empanado e uma grande expectativa sobre a entrada no Egito também eram nossos companheiros de mesa.
Sabíamos que essa seria um das fronteiras mais chatas, com uma série de burocracias para entrar com o Pezão. Porém a presença do Alan, que fez o percurso algumas vezes, nos tranqüilizava.
O ferry aportou e ficamos aguardando. Somente uma hora depois de parados, pudemos começar a nos movimentar em direção aos carros para começar a transição. A imigração foi bem rápida, dentro da própria embarcação. Agora, já o Pezão...
O Alan tinha um conhecido que estava nos auxiliando nos processos. Resumindo, foram mais de quatro horas seguindo nosso despachante e abrindo a carteira. Como um grupo de escoteiros, íamos enfileirados em cada etapa. “Pague aqui, preencha esse papel, pague de novo, carimbe lá ao longe e volte para cá para, novamente, pagar um qualquer!”. Pelo menos conseguíamos, em grupo, dar algumas risadas.
O único momento tenso foi quando descobrimos que o maluco do cara do seguro estava destacando uma página de cada Carnê de Passagem. Inacreditável! Quando começamos a chiar, rolaram algumas caras feias para a gente. É realmente muito ruim a sensação de impotência em certas fronteiras. É como se ouvíssemos constantemente a frase: “Ô gringo! Não reclama muito aí não, senão a gente não te deixa entrar e complica e muito a sua vida...”. É um saco, mas é muito mais fácil negar uma propina a um “policial amigo”, já dentro do país, do que encrencar quando você ainda não entrou.
Bom, e a página do Carnê? Eu fiquei pau da vida! Porque o “gente fina” do seguro não só pegou mais uma página, como pegou uma página limpinha, e eu ainda estava com a rabiscada erradamente pelo sírios. Eu tinha perdido duas páginas do nosso magro Carnê! Fiz as contas com as que sobraram e vi que não daria pra chegar à África do Sul.
Comecei a reclamar com o nosso despachante, que por sua vez começou a ficar nervoso. Ele só se preocupava em dizer que o fato de eu ter uma folha a menos e uma rabiscada não seria impeditivo para entrada no Egito, mas ele não conseguia entender de forma alguma que o nosso problema estava mais à frente. Pelo menos eu tive a idéia de tentar trocar com o cara do seguro a folha em branco pela rabiscada na Síria: “Parceiro, não concordo com essa coisa de ficar com uma folha, mas não estou vendo muito jeito... Pode, pelo menos, ficar com essa rabiscada?”. O figura topou na hora. Eu sorri e cheguei a agradecer a “gentileza”. Fazer o quê? Bola pra frente.
Quando terminamos o processo, a noite quase caía. Saímos em comboio com placas e carteiras de motorista em árabe. Nosso destino era Dahab, um primeiro e esperado contato com o litoral do Mar Vermelho. Comemorávamos felizes e não acreditávamos que íamos, novamente, mergulhar em águas cristalinas.
A noite caiu na metade do caminho, então o comboio seguiu em ritmo bem lento na escuridão. O motorista egípcio é incrivelmente imprudente. Ele não só não acende o farol na estrada durante o dia, como também não acende durante a noite.
Chegamos a nossa pousada e realmente nos surpreendemos. A principal rua de Dahab, à beira-mar, é extremamente agradável. Realmente um convite para relaxar e mergulhar. A nossa pousada dava acesso direto para essa rua, e de lá víamos os mergulhadores caminhando por entre os bares e restaurantes se dirigindo para o mar. A transparência da água era fenomenal.
Combinamos em abusar um pouco e ficar por quatro noites. Foi uma estadia excelente, com mergulhos pela manhã, descansos à tarde, internet razoavelmente rápida e boa comida.
Fomos fazer um mergulho autônomo com o pessoal da própria pousada, pois lá também funcionava uma operadora de mergulho. Saímos caminhando por duzentos metros e entramos no ponto de mergulho batizado de Lighthouse. O mergulho foi muito tranquilo, mas sem a vida e as cores que esperávamos. A Du chegou a se enfezar com ela mesma por achar que não estava conseguindo registrar as cores do coral por erro no uso do flash. Porém, o que ficou claro para a gente, principalmente depois que eu fui a um mergulho noturno no mesmo ponto, é que todo o coral estava soterrado.
Não havia cores porque o coral estava totalmente morto. Era como se você caminhasse em um deserto que fora antes uma floresta. Todas as formas dos corais preservadas, mas somente como esqueletos. E a vida marinha, que de fato prolifera em corais vivos, quase inexiste neste deserto marinho à beira do Mar Vermelho.
Bem no início do mergulho noturno já dava para perceber o tamanho do estrago. Olhei para os lados e pude contar mais de duas dezenas de lanternas somente no meu campo de visão. Durante o nado, cruzamos com outras dúzias de mergulhadores. E isso, à noite. Para mim, foi um mergulho muito triste. Desisti rapidamente de buscar algo de interessante para ver e fiquei somente iluminando o coral morto e pensando como aquilo era desolador.
Quando chegamos de volta à praia, observei ainda mais mergulhadores se preparando para entrar e imaginei o ciclo que ali se instalara: noite e dia, revezando-se, milhares de turistas entrando sem parar com suas nadadeiras e suas indiferenças. Falei para o nosso instrutor, um garoto de seus vinte e poucos anos: “Cara, vocês têm noção que esse coral está totalmente destruído, e que essa destruição foi causada pelos mergulhadores?”. Ele fez uma cara de que sabia exatamente do que eu falava. Ele argumentou que as operadoras, por vezes, tentam interceder junto ao governo para criar regras que regulem o turismo excessivo, mas sem obter sucesso. Comentei que achava ser uma questão de pouco tempo até o turismo matar de vez tudo que há ali e simplesmente escolher outro lugar para destruir, o que acabaria com o trabalho dele. Falei que ele era novo, e que cabia a ele brigar para mudar esse rumo. Ele me olhou e respondeu com um ar de desânimo: “Welcome to Egypt”.
Tivemos a oportunidade de conhecer mais dois pontos de mergulhos, um pouco mais afastados. Digo, afastados do pequeno centro de Dahab, mas não dos incontáveis mergulhadores. Um dos pontos, o Blue Hole, é fascinante. O coral está em sua maior parte impactado mas, diferente do Lighthouse, possui ainda algumas cores e alguma vida. Vimos também a interessante atividade dos mergulhadores de alta profundidade em apnéia.
Na saída, não pude evitar em olhar em volta e me espantar com a quantidade de pessoas dentro da água. O Blue Hole parecia uma piscina de clube em um domingo de sol. Comentei sobre a quantidade de turistas com o cara do restaurante e ele respondeu com um riso amarelo: “Vocês não viram nada... Hoje está bem calmo por aqui”.
Seguimos para um último ponto de mergulho, as Golden Rocks, para vivenciar algo parecido. O destaque positivo ficou por conta de um polvo fora da toca que interagimos por quase trinta minutos, descendo cerca de cinco metros para fotografar e filmar. O ponto negativo ficou pela visão de uma mergulhadora saindo da água com todo o equipamento, de ré, utilizando os calcanhares sobre os corais como propulsores. A Du não agüentou e gritou com a “gênio” que ela não podia fazer isso, e ela se limitou a responder: “Sorry...”.
Terminamos o dia felizes e tristes. Não foi bom compactuar com essa destruição. Por mais que você se esforce para não danificar diretamente o coral, sabemos que somente o excesso de nadadores já é capaz de causar danos irreparáveis com os anos. Ao mesmo tempo, cabe ao governo responsável colocar regras que preservem o local para que você, que deseja visitar sem impactar, possa pagar e esperar a sua vez.
Após a relaxada em Dahab, seguimos em direção ao Cairo. Não tínhamos grandes objetivos turísticos na capital, à exceção, obviamente, das pirâmides, mas queríamos aproveitar para ir às embaixadas sudanesa e etíope para conseguir nossos vistos. Tínhamos tido notícias de pessoas com grandes dificuldades em conseguir o visto do Sudão, então esse processo realmente nos preocupava.
Como a distância era longa, combinamos de parar no meio do caminho e quebrar a viagem em duas. Após algumas tentativas fracassadas de achar um hotel às margens do Mar Vermelho, acabamos na cidade de Suez, dona do famoso Canal. Antes de chegar à cidade, uma passada pelo túnel que cruza o Canal por baixo nos fez merecedores da comemoração de mais um continente conquistado... Entrávamos, finalmente, na África!
Chegamos bem tarde, já noite, e não conseguimos muitas opções de hotel. Fomos atrás de alguns que o GPS indicava e tivemos o primeiro contato com a baixa infra-estrutura africana. A entrada a cidade de Suez era um caos empoeirado, desorganizado e interessante, aquilo que viria a ser nossa rotina nos próximos meses.
Na recepção, pediram, como sempre, os passaportes. Entreguei com a promessa de devolução pela manhã. “Por favor, não me deixe esquecer!”, brinquei. Mal podia imaginar...
Saímos bem cedo em direção ao Cairo. A viagem era razoavelmente curta, então seguimos em ritmo calmo, aproveitando o caminho. Chegamos, finalmente, às primeiras ruas da cidade e ficamos espantados. É difícil acreditar que alguém que conhece as cidades do Rio de Janeiro e de São Paulo possa se espantar com um trânsito, mas o Cairo assusta de fato.
Não existem faixas de rolamento. Na verdade, elas existem, mas não servem para nada. Cada um vai por onde quer, na constante tentativa de passar à frente do outro. Se você resolve não compactuar para o caos e se limita a ficar em uma única faixa, começa a receber buzinadas, “chegas-pra-lá” e cara feias como se estivesse sendo egoísta, “querendo uma faixa só pra você”. Mas, pelo menos, é divertido.
Fomos seguindo o GPS até o endereço do hotel que o Alan indicara. Chegamos, sem grandes novidades e sem nenhum amassado. Só que o hotel estava lotado. Tínhamos como opção um camping e, como ele ficava afastado do centro da cidade, combinamos de procurar a embaixada brasileira, para pegar uma carta de indicação que o pessoal do Sudão pede para o visto, e depois ir para lá.
Tentamos rodar um pouco com o Pezão, mas não demorou muito para nos convencermos de que isso era impossível. A solução seria pegarmos um taxi, mas uma vaga também não parecia algo muito fácil. Acabamos conseguindo uma vaga, quando fomos abordados pelo famoso flanelinha, e pagamos caro por ela. Pegamos o táxi, demos o endereço e começamos a rezar junto com o início da direção do taxista – o piloto era enlouquecido!
Não perdendo em nada em arrojo para as vans da Síria, nosso obstinado motorista ia dando uma aula de como tirar finos e de como ganhar poucos centímetros através de inúmeros riscos. Procuramos cintos de segurança e “néca”. Certa hora, ele vinha em uma larga via, de quatro pistas, tipo Avenida das Américas, no Rio, totalmente paralisada pelo trânsito. Quando apareceu uma brecha no canteiro central, ele quebrou à esquerda. “Ah, vai retornar”, pensamos. Nisso, ao invés de usar todo o jogo do carro, ele foi meio na diagonal, ficando totalmente atravessado e impedindo a passagem dos carros. “Rapaz... O figura vai aonde?!”. Olhamos para frente e não havia rua para ele ir. Aí, ele começou a redirecionar o possante e seguir mais em diagonal, quase na contramão! Foi quando vimos a rua que ele queria pegar! Sua projeção ficava alguns metros antes do retorno, então significava que ele iria dar uma arrojada e tanto na contramão. Ficamos os três em grande expectativa. Pra falar a verdade, só eu a Du estávamos tensos, o cara seguia relaxadamente buzinando. Empurra, buzina, reclama e avança – estávamos quase lá. Quando ele enfiou o carro na frente do motorista da última fila, e esse parou, exclamamos: “Não é que vai dar certo?!”. Vendo que a hesitação do outro motorista dava a ele a preciosa oportunidade de terminar a travessia, ele não titubeou e acelerou. Só que não seria tão fácil... Quando ele estava com meio carro atravessado, surgiu um não menos veloz motociclista e se espatifou contra o carro. A Du deu um berro! O motociclista voou por cima do capô e aterrissou longe das nossas vistas. Só deu tempo de ver que o maluco estava sem capacete. “Pronto! Tinha que dar merda!”.
Saímos todos do carro e fomos ver o tamanho da cagada. Novamente Alá fez a parte dele e ninguém se machucou. O taxista ficou meio segundo olhando o motociclista e rapidamente voltou sua atenção e lamentação para o carro amassado. Ficamos sem saber se íamos embora ou se continuávamos por ali. Em alguns minutos, cada um juntou seus cacos e a vida seguiu. Entramos de volta no táxi e não falamos nada. “Agora o cara vai dirigir devagar...”, rimos da situação.
Trinta segundos depois, o cara parou o carro e mandou a gente descer. Olhamos-nos e tentamos confirmar se estávamos realmente no endereço pedido. Ele deu uma resmungada, apontando para trás. Insistimos que queríamos ir até o endereço que falamos, mas só conseguimos receber mais resmungos em árabe. Desistimos e saímos do táxi, pagando o que estava no taxímetro. Peguei o GPS de mão e vi que devíamos cruzar a ponte sobre o Nilo. Desistimos de um novo táxi e seguimos a pé. Andamos um bocado, sempre pedindo informações. Quase meia hora de caminhada depois, conseguimos alguém com um inglês razoável que nos falou que deveríamos pegar um táxi! “Pelamordideus, que faina inacabável!”. Pegamos o tal táxi, que nos cobrou 50% a mais só pra ligar o ar condicionado!, e finalmente chegamos.
Entramos na embaixada com certo alívio. Eram duas e meia da tarde e, pelo que tínhamos visto na internet, a embaixada ficava aberta até as três. Quando paramos na porta de um prédio velho, o recepcionista nos mostrou uma placa que informava: “Atendimento de 9:00 às 12:00h”. “Pelamordideus de novo!”. Vendo nosso desespero, o cara nos permitiu bater na porta. Tocamos a campainha por duas vezes, e já íamos desistindo, quando abriram.
A embaixada não tinha uma aparência muito legal. Quem nos atendeu foi um senhor simpático, e contamos nossa história. Viagem, carro, Egito, Sudão, carta, etc. Pouco depois, aparece o vice-Cônsul. “Que idéia essa de ir pro Sudão, hein?! Vocês sabiam que lá é uma área de conflito terrivelmente perigosa?!”. Começamos a falar do nosso entendimento, que tínhamos pesquisado, que a área de conflito fica restrita ao sul, etc., mas não foi muito interessante para ele. “Bom, vou fazer a carta, mas recomendo que vocês façam outro caminho!”. “Ok, obrigado.” “Podem me dar seus passaportes?”. “Claro!”.
Quando procurei... Cadê?! “Ferrou! Os passaportes ficaram no hotel em Suez!”.
Inacreditável! Os passaportes tinham ficado no hotel! Durante dois segundos, toda a distância entre nós e nossos passaportes passou pela minha cabeça como um filme em alta velocidade. Tínhamos que sair dali, pegar um táxi até o Pezão, sair com o ele no trânsito infernal e rodar duas horas de estrada! Que desespero! Debaixo de mais algumas repreensões vice-consulares, não só por estarmos querendo nos suicidar no Sudão, como também por estarmos ilegais no Egito, saímos correndo da embaixada.
Pegamos o primeiro táxi que vimos e tentamos dizer onde estava o Pezão. O trânsito estava pior do que antes! Cada vez que o taxista pisava no freio eu ficava mais agoniado. Eu não conseguia parar de reclamar comigo mesmo por ter deixado os passaportes no hotel. Parecia impossível conseguir chegar até eles sem sermos parados pela polícia. Entre Dahab e Suez nós mostramos os passaportes, sem exageros, umas cinco vezes. Como tínhamos seguido entre Suez e o Cairo sem mostrá-los nenhuma vez, isso eu não sabia, mas minhas fichas estavam todas nessa hipótese: de que entre Cairo e Suez a polícia não pára muitos automóveis e poderíamos chegar lá sãos e salvos.
Chegamos, finalmente, ao Pezão. Entramos no carro sem muita paciência para as mesmas piadas sobre o Brasil dos guardadores. Era hora de colocar o hotel de Suez de novo no GPS e tentar sair daquele caos. Olhei para o relógio e eram quase quatro horas. Pensei na hora que nossas maiores chances de chegarmos incógnitos eram durante o dia, com maior fluxo. Saímos com o Pezão. Na verdade, tentamos sair. O trânsito simplesmente estava parado! Algo completamente insuportável para quem tinha uma pressa nas entranhas, como nós. Estávamos realmente preocupados, pois não sabíamos qual seria a reação da polícia caso pegasse dois indivíduos sem passaportes, sem condições de provar que têm visto para o Egito, alegando que os passaportes estavam a cento e sessenta quilômetros de distância e pedindo, por favor, para os deixarem ir lá buscá-los.
A Du nessa hora tentava mais me acalmar do que qualquer coisa. Depois de duas freadas mais bruscas falei comigo mesmo: “Não piore as coisas... Uma batida agora seria a pá de cal!”. Cheguei a conclusão que estávamos fazendo o que dava, que era nos dirigirmos para junto dos nossos documentos, e tentei me acalmar. Olhei para o GPS: indicava quase duas horas de viagem. Isso, se conseguíssemos andar. Percebi nessa hora que essa seria uma longa viagem.
Conseguimos, enfim, sair da cidade e entrar na estrada. Agora, a projeção do GPS seria mais precisa – a chegada seria à noite. “Haja sorte para sair dessa!”. Avistei uma parada policial à frente. A fila de carros parou o trânsito. Olhei com cuidado e vi o policial que falava com os motoristas. Nessa hora comecei a imaginar o discurso. Primeiro, um ensaio para a hipótese de ele somente perguntar onde estávamos indo e não pedir o passaporte – já havia acontecido antes e era possível, apesar de pouco provável. Depois, outro para caso ele pedisse – falar para ligar para o hotel, mandar alguém conosco, a gente contratar um táxi ou uma moto para buscar, sei lá... Uma coisa era certa: eu não deixaria a Du sozinha. Ou seja, nada de um ir buscar os passaportes e o outro ficar esperando na polícia.
Estávamos a cerca de seis carros de distância quando o policial começou a demorar no carro da vez. Após algumas palavras, mandou encostar e o acompanhou. Nisso, a fila andou e passamos direto! Cacetada! Essa foi por pouco! Meu coração batia forte.
Seguimos mais calmos, pois o GPS indicava uma única parada policial entre nós e nossos passaportes. “Vai dar certo!”. Ficávamos olhando o GPS e ele simplesmente não andava. Que viagem longa! O posto policial ia ficando cada vez mais perto e nossa reza cada vez mais alta. Felizmente não estavam parando ninguém, e passamos sem problemas.
Aí, foi só seguir com cuidado até o hotel e soltar os cachorros. Eu estava me culpando o tempo inteiro, mas na relação com o hotel eu coloquei a devida culpa neles. Eu não pedi para guardarem os passaportes na recepção, eles é que colocaram essa condição. Eles tinham a obrigação de nos devolver. Eles aceitaram nossa argumentação e assumiram a culpa desde o início. Após umas boas reclamadas, ficamos mais felizes com um quarto e um jantar de graça e acabamos, como sempre, tentando rir da situação. Mas com uma promessa de nunca mais deixarmos os passaportes em recepções novamente!
Voltamos ao Cairo e à nossa embaixada no dia seguinte. Após a mesma recepção calorosa, pegamos a carta. Antes, o vice-Cônsul nos perguntou quando pretendíamos sair do Cairo. "Daqui a três dias", respondemos. “Impossível! Esqueçam! O visto do Sudão demora pelo menos uma semana!”. Fomos embora, meio desanimados.
Seguimos direto para a embaixada do Sudão. Sentíamo-nos assinando nossas sentenças de morte. Chegamos e nos deparamos com um lugar um pouco agitado, mas rapidamente fomos recebidos com um largo sorriso – o que sempre acontece quando nos apresentamos como brasileiros.
Preenchemos um típico formulário, colocamos uma típica foto e pagamos a típica taxa. Depois de entregar tudo o cara falou: “Ok, tudo certo. Podem vir buscar o visto às três”. Ficamos meio perdidos: três dias, terça-feira que vem... "Três o quê?”. “Três da tarde de hoje!”, respondeu o sudanês. Sorrimos, lembramos do nosso amigo da embaixada e saímos para almoçar.
Saímos leves e ainda tivemos a sorte de achar um excelente restaurante. Comemos sem pressa e, em poucas horas, comemoramos nossos vistos como se já tivéssemos entrado em mais um país.
Com a dificuldade de conseguir hotéis, não hesitamos e seguimos para o camping. Nossa intenção era aproveitar o dia seguinte, sexta-feira, dia que tudo pára, para conhecermos a pirâmides. Como o camping ficava perto delas, nos pareceu a opção mais lógica. Mais ou menos... Primeiro, o suplício para chegar. Era quinta-feira, ou seja, véspera de fim de semana, às cinco da tarde. É a nossa sexta-feira! Quem mora no Rio ou em São Paulo sabe o que isso significa. Demoramos quase duas horas para andar dez quilômetros! Quando estávamos em uma via larga, o GPS nos mandou entrar em uma perpendicular e... Estava fechada! Eu passei direto e pedi para ele recalcular – o maluco do aparelho ficava me mandando voltar à mesma rua fechada! Sensacional! Em um trânsito louco, e às cegas! Perfeito... “Que que eu tô fazendo aqui?!", lamentei.
Depois de muito suplício, conseguimos chegar. O pessoal do camping era até boa gente, mas a limpeza deixava muito a desejar. Estávamos precisando descansar, então optamos por alugar um pequeno quarto, quase do mesmo preço do camping. Para quê?! Disparado, o quarto mais sujo que tivemos a oportunidade de habitar em toda a viagem! A Du vestiu a fantasia de Amélia da WE e fez uma faxina geral! Do banheiro ao quarto! Só ela contando... Dei uma olhada na área para acampar e, surpresa!, era a mesma titica. No dia seguinte, foi a vez da área financeira assumir as rédeas da situação precária da expedição e resolver o problema de habitação: “emburacamos” um hotel adentro e praticamente não saímos mais de lá.
Dormimos na nossa “ilha” e fomos ver as pirâmides no dia seguinte. A “domingueira” também traz as mesma melhorias no trânsito, então não sofremos tanto. Chegamos às pirâmides e... Não curtimos! (Aqueles que estão revoltados com nossas críticas não se desesperem, há elogios à frente. Coisas boas também aconteceram, mas o Cairo é realmente de dar dó!)
As pirâmides tornaram-se uma atração inteiramente turística. Até aí, tudo bem. As hordas de turistas da Turquia também fazem esse papel chato. Mas no Egito a coisa é muito pior! Primeiro, já na entrada, fomos abordados em perfeito inglês por um figura com pinta de “organizer”:
- Bom dia. Sejam bem-vindos... Posso ver seus ingressos?
- Bom dia. Pois não... Aqui estão.
- Vocês sabem que esse ingresso dá direito à visita ao interior da pequena pirâmide, mas não das grandes? E vocês sabem também que podem ir ao museu?
- Sim, sabemos. Vamos ver as grandes só de fora mesmo.
- Ok, vamos então? (Já se colocando ao nosso lado e olhando para frente)
- Como assim? Vamos aonde? Precisamos de um guia?
- Ah, veja bem, não precisa pagar, é só dar a gorjeta no final...
- Ué, você não trabalha na administração?!
- Não, só ofereço meus serviços...
Que cara-de-pau! O malandro chega com a pinta de staff do lugar e está, na verdade, vendendo uma ajuda que você não pediu.
Trinta centímetros depois aparece um garoto com uma bugiganga qualquer:
- Olá! É para vocês!
- Oi, tudo bem? Bom dia. Cara, valeu mesmo, mas não queremos comprar nada.
- Não precisa comprar, é uma lembrança.
- Ah... então tá! Vou levar! É isso mesmo? Uma lembrança? Eu não vou te dar nada!
- Sim... Sim... Se gostou, aceito só um trocadinho, coisa miúda.
Não tem jeito, neguinho é muito picareta! A partir daí, passamos a dar “No, thanks!”, ainda com um leve sorriso nos lábios, a cada dois metros. Passeio de cavalo, passeio de camelo, subida no camelo, foto com o camelo, lambida no camelo... Muito chato! Depois de quinze minutos, ainda tentando chegar à pirâmide mais afastada, reparamos nos demais turistas e vimos a forma grosseira como eles davam a negativa à venda. Era realmente rude. Poucos minutos, e muitos vendedores, mais tarde percebemos que teríamos que adotar a mesma postura.
Essa é a parte ruim da história: mais do que tentar “aproveitar assim mesmo” e manter o clima alegre, a necessidade de ser grosseiro acaba realmente atrapalhando o passeio. Mas, tudo bem. Vimos as pirâmides, que são obviamente interessantes, e nos despedimos dos vendedores, quase insuportáveis.
No domingo fomos ao Centro para dar entrada no visto da Etiópia e tentar pegar, em uma empresa de turismo, uma carta que nos autorizaria a andar pela estrada do deserto. Pegamos um táxi que simplesmente se negou a nos levar somente à embaixada etíope. Ele insistiu durante todo o percurso para que ficássemos com ele o dia todo, no que ele chamava de “tour”. Fiz as contas e propus um preço próximo do que seria pegando todos os táxis. Ele topou e ficamos, assim, de motorista particular para cima e para baixo. O auge da “turistagem” foi o almoço que ele nos indicou e nos levou: um barco ancorado à beira do Nilo servindo um almoço caro e porcaria para dezenas de turistas por segundo. Não conseguimos nos lembrar de pior almoço nos últimos meses. Um casal francês ao nosso lado ficou praguejando na mesa e simplesmente não encostou na comida.
Fomos para o hotel e voltamos a tentar relaxar. No dia seguinte partiríamos para o deserto e para a liberdade.
Que visão! Vistos do Sudão e da Etiópia na mão, carta para a polícia e Pezão abastecido de Diesel e mantimentos. De um lado, areia, do outro, mais areia. Na frente, ninguém. Simplesmente ninguém! Respiramos aliviados quando finalmente apontamos para a estrada que nos levaria ao Western Desert. Estávamos novamente sorrindo espontaneamente!
A bela e monótona paisagem dessa estrada é quebrada constantemente por postos policiais. Tínhamos ouvido algumas más histórias sobre a polícia egípcia, mas realmente não tivemos nenhum problema. Somente a primeira barreira foi um pouco mais difícil, pois tivemos que mostrar a carta e nos negar a assinar um papel que dizia que não faríamos off-road. Depois, a cada hora, acontecia uma parada policial, sempre no mesmo fantástico roteiro:
- Helou! Uer ar iú fron?
- Brazil!
- Brazil?! Haha! Káka! Ronaldinho! Zico! Pili! Brazil gude, véri gude!
- Thank you...
- Tú? (olhando para a Du e fazendo um “dois” com os dedos)
- Tú. (respondíamos rindo)
E assim se repetiu por inúmeras vezes. Em alguns postos, eles eram realmente simpáticos e insistiam em nos convidar para um chá. No calor de mais de quarenta graus, acabávamos recusando, mas essa foi realmente uma grata surpresa.
Nesse passeio pelo deserto do oeste do Egito, paramos em três Oásis: Bahariya, Dahkla e Kharga, além do impressionante Deserto Branco entre os dois primeiros. Nesse magnífico deserto, a natureza mostrou toda a sua veia de escultora – as “obras” formadas pela erosão são fantásticas e extremamente numerosas. Da mesma forma que observar nuvens no céu, fica a cargo da imaginação de cada um projetar formas de objetos e animais nas esculturas. Os mais famosos são os fascinantes cogumelos. A visita ao Egito praticamente foi justificada pelas quase quatro horas que passamos nas areias do Deserto Branco. Foi uma pena não podermos acampar nele e poder aproveitar novamente uma noite estrelada e calma.
Depois do deserto, chegou a vez da cidade de Luxor, um dos grandes pontos turísticos do Egito. Estávamos com a programação muito apertada, com muita quilometragem diária e com data rígida de chegada ao sul do país para pegar o ferry semanal para o Sudão, então só nos sobrou uma noite para Luxor. Chegamos ao final da tarde e vimos muito pouco da cidade. Achamos um hotel e paramos, bem cansados do deserto.
Em certo momento fui ao Pezão pegar umas tralhas. Pra quê? Fui cercado por uma quantidade absurda de “pilotos” de charrete que insistiam em vender uma volta pela cidade. Fiz o esquema fechar a cara e dar patadas, mas ainda assim tive dificuldades em continuar o que estava fazendo no carro. Nessa hora, um dos caras gritou o preço e eu achei muito barato. Ele falou em cinco libras, o equivalente a um dólar para andar por uma hora. Pensei que a Du poderia gostar de fazer o passeio, para poder tirar pelo menos algumas fotos da cidade. Falei com ele que decidiria mais tarde.
Comentei com a Du e ela falou: “Um dólar? Duvido!”. Fomos jantar no hotel e comentamos sobre o possível passeio com o gente boa da recepção. Aí, ele nos alertou veementemente para não confiar naquele pessoal e combinar o preço antes. Falou para pagarmos, no máximo, cinqüenta libras por hora, e que eles tentariam nos cobrar mais. “Não falei?!”, brincou a Du. Ficou claro então que o preço cantado antes era picaretagem e que as cinco libras virariam cinqüenta ou mais depois do passeio. “O Sudão tá longe ainda?...”, resmunguei.
Desistimos de qualquer coisa, dormimos e saímos na manhã seguinte para a última cidade egípcia, Aswan. Já tínhamos hotel reservado, então navegamos o Pezão sem pressa e chegamos sem problemas. Tínhamos adiantado a papelada e estávamos com a vaga garantida. Agora, era só esperar e embarcar.
Quando chegamos ao hotel, vimos outros carros de overlanding estacionados. Como estávamos um pouco receosos com a travessia do Sudão, tratamos logo de fazer contato para tentar seguir em comboio. Conhecemos então duas simpáticas alemãs, Anita e Uta, que acabaram se tornando nossas amigas.
No dia de pagar o ferry, conhecemos outro alemão, chamado Mirko, que dirigia um Defender adaptado como trailler. Juntando com um casal que estava iniciando a viagem em uma espetacular moto BMW, tínhamos o nosso comboio montado.
Seguindo a dica da amiga da Du, Clarissa, fomos fazer o famoso passeio de Feluca, uma espécie de jangada egípcia, pelo rio Nilo. Foi realmente agradável, principalmente a volta, ao final da tarde. A Du aproveitou para tirar excelentes fotos.
O último dia no Egito, uma segunda-feira, prometia ser longo. Tínhamos que fechar a papelada de saída do Pezão, embarcá-lo na balsa, e seguir para o nosso barco de passageiros. Esse processo começou às 8h30 da manhã e só terminou às seis da tarde. Toda a curtição ficou por conta de observar e registrar todo o circo que estava formado. Centenas de pessoas e suas bagagens, além de incontáveis caixas de mercadorias de todo o tipo, seguiam freneticamente em direção às embarcações. O tumulto era generalizado. Papéis eram recebidos e carimbados em uma velocidade e com uma gritaria que leva você a questionar a capacidade de controle daquilo tudo.
Precisamente às seis e vinte da noite nosso ferry partia. Estávamos incrivelmente instalados em um acampamento formado somente por nossos sacos de dormir ao lado da cabine do capitão. Ao redor, não se via mais convés. Todos os espaços, simplesmente todos!, haviam sido ocupados por tapetes, cobertores, caixas e malas. Toda a aventura da nossa noite no ferry vai ser contada no diário do Sudão. Não há duvidas de que ele tem mais a ver com esse nosso próximo país. Agora sim, estávamos entrando na verdadeira África!
O Egito foi interessante de se conhecer, apesar de certas decepções com o ritmo turístico do país. Seguimos agora, mais do que nunca, o rumo sul!